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Aplicações terapêuticas das células-tronco: perspectivas e desafios
por Claudio L. Lottenberg
e Carlos A. Moreira-Filho
As células-tronco (CT) são células primordiais
indiferenciadas, encontradas em tecidos embrionários (CTE) e também em
tecidos adultos (CTA) como o hematopoético, muscular, epitelial, nervoso e
hepático. O potencial ilimitado de auto-renovação e a capacidade de originar
linhagens celulares com diferentes funções impulsionaram pesquisas sobre as
aplicações terapêuticas dessas células. Os principais alvos têm sido as
doenças crônicas, (doenças cardiovasculares e neurodegenerativas,
nefropatias, diabetes tipo 1) o acidente vascular cerebral, as doenças
hematológicas, as imunodeficiências, e traumas da medula espinhal, onde o
objetivo mais imediato é reparar ou reconstituir o tecido afetado pela
doença.
As primeiras aplicações terapêuticas de CT ocorreram com o uso de células
multipotentes derivadas de tecidos adultos, tanto em transplantes autólogos
como em alogênicos, enquanto o uso de CTE ainda está limitado aos
experimentos com modelos animais. A maior experiência está no uso de
células-tronco derivadas do tecido hematopoético, as CTH, que já são
largamente empregadas como alternativa ao transplante de medula óssea no
tratamento de leucemia aguda e leucemia mielóide crônica com excelentes
resultados.
Células do sangue de cordão umbilical
No Brasil são feitos anualmente cerca de 2,5 transplantes de medula por
milhão de habitantes contra uma média de 7 a 10 nos países desenvolvidos. As
limitações são o custo do procedimento e a baixa disponibilidade de doadores
compatíveis. A conseqüência para o paciente é um tempo de espera em torno de
um ano, infelizmente longo demais em muitos casos. Uma alternativa para
aumentar a disponibilidade de doadores, e reduzir o custo do transplante, é
o uso de sangue de cordão umbilical (SCU), rico em células-tronco e que pode
ser usado para reconstituição hematopoética. As células de SCU são menos
imunorreativas que as da medula óssea, permitindo o uso em transplantes
não-aparentados idênticos ou parcialmente idênticos com menos complicações.
As células de SCU podem ser criopreservadas e bancos públicos dessas células
existem em vários países, destacando-se a iniciativa pan-européia Eurocord2.
Em 2003 esses bancos já dispunham de 130.000 unidades de SCU disponíveis
para transplante e 3.000 transplantes já haviam sido feitos desde 1998, com
alta taxa de sucesso2.
O banco público possui importantes vantagens sobre o congelamento privado de
SCU. A mais importante é que o transplante autólogo (com células do próprio
paciente) tem resultado pior do que o alogênico (com células de um doador,
aparentado ou não) em casos de leucemia, imunodeficiências e anemia
aplástica3. Além disso, a probabilidade de que uma criança vá precisar de
suas próprias células é, segundo a maioria dos estudos, muito baixa (1:100.
000), não justificando os custos do depósito para uso próprio.
Presentemente, única desvantagem do uso de SCU é o que número de CTH por
cordão varia conforme a doadora e as condições de coleta, limitando o
transplante a pacientes na faixa de 50-60kg de peso. Essa limitação deverá
ser superada brevemente: técnicas de expansão ex-vivo das CTH derivadas de
cordão estão sendo desenvolvidas por vários grupos de pesquisa, entre os
quais o do IEP Albert Einstein, o que aumentará o alcance dos bancos de SCU.
O desafio brasileiro é estabelecer um banco público de SCU. A meta definida
pelo projeto Brasil Cord4, de 1999, previa a coleta de 12.000 unidades de
SCU em 3 anos (com o que estaria coberta diversidade genética da população
brasileira) em 4 a 8 centros de processamento no país. Estudos de
viabilidade técnica e econômica dessa rede foram revisados em 2002 por um
grupo multi-institucional reunido no IEP Albert Eisntein.
A busca de células compatíveis de medula óssea com auxílio dos bancos
internacionais é de USD 40.000,00 por paciente4, e o sistema público de
saúde deve gastar USD 2 milhões por ano apenas nesse tipo de busca,
considerando-se a meta de 50 transplantes/ano autorizados nessas condições.
Isso, obviamente, não inclui o custo do transplante. Complicações derivadas
da menor identidade genética entre doador e receptor aumentam o risco de
complicações e o custo final do procedimento. A implantação completa do
Brasil Cord (equipamento dos centros, treinamento das equipes e custeio das
operações de coleta) não superaria USD 10 milhões em 5 anos e permitiria a
realização de 190 transplantes/ano, com economia de USD 7.5 milhões/ ano de
gastos no exterior. Além da vantagem econômica, estão a garantia da
disponibilidade das células, a geração de tecnologia no país e a abertura
para a pesquisa de outros usos terapêuticos das CTH derivadas de cordão, o
que, novamente, passa pelo banco público.
Aplicações em cardiologia
Em cardiologia as CTH autólogas (coletadas da medula óssea do próprio
paciente) são ainda as células de escolha para uso em procedimentos que
visam a regenerar o músculo cardíaco afetado por infarto. Insuficiências
cardíacas causadas por perda ou disfunção de células musculares no coração
atingem cerca de 4.8 milhões de pessoas nos EUA, com cerca de 400.000 novos
casos por ano, e uma taxa de mortalidade superior a 50% dentro dos cinco
primeiros anos após o diagnóstico inicial (NIH report, 2001).
O emprego de CT pode atenuar danos causados ao coração em decorrência de
hipertensão, insuficiência crônica, doença da artéria coronária ou ataque
cardíaco, contribuindo para uma redução da taxa de morbidade. Estudos
pré-clínicos com modelos animais de infarto agudo do miocárdio constataram a
regeneração de músculo e a formação de neo-vasos em área infartada, após
transplantes de CT alogênicos5. Em seres humanos, esses resultados foram
confirmados em estudos de fase I com CTH multipotentes da medula óssea e
mioblastos esqueléticos6,7, abrindo a possibilidade do uso de células
autólogas nesses procedimentos.
Presentemente, investiga-se com qual população, ou populações de CT adultas,
se obtêm os melhores resultados em termos de reparo muscular e
revascularização, havendo grande interesse nos progenitores endoteliais (angioblastos)
e nas células mesenquimais da medula óssea. Nessa linha, o IEP Albert
Einstein e o Depto. de Cardiologia do Hospital Albert Einstein desenvolvem
um projeto para o uso de CT autólogas no tratamento de voluntários com
cardiomiopatia isquêmica, com os primeiros transplantes previstos para o
final de 2004.
Aplicações em neurologia
Entre as primeiras aplicações da terapia celular em neurologia está o
tratamento da esclerose múltipla, uma doença inflamatória crônica do sistema
nervoso central, de natureza autoimune, com déficit neurológico progressivo.
O tratamento convencional emprega drogas imunossupressoras, mas há casos
refratários onde a terapia celular com CTH aparece como alternativa. O
procedimento consiste em intensa imunossupressão por quimioterapia e /ou
radioterapia, seguida da reconstituição do sistema imune com CTH autólogas
ou alogênicas. Ou seja, procura-se eliminar as células do sistema imune do
paciente que estão agredindo seu sistema nervoso e substituí-las por novas
células derivadas das CTH. No hospital Albert Einstein está em execução um
estudo piloto onde as CTH do paciente com esclerose múltipla refratária são
mobilizadas para a circulação periférica com o uso de determinadas drogas,
coletadas e congeladas. A seguir o paciente submete-se à imunossupressão com
quimioterapia e, depois, à reconstituição hematopoiética, feita com suas
próprias CTH que haviam sido congeladas. Protocolos de pesquisa desse tipo
estão em execução em diversas instituições no mundo com resultados
satisfatórios: cerca de 70% dos pacientes apresentam melhora ou
estabilização do quadro.
O próximo desafio nessa área são as doenças cérebro-vasculares. O interesse
mais imediato é o emprego de CT na redução de morbidade após o acidente
vascular cerebral isquêmico (AVCI), uma doença com altas taxas de
mortalidade e morbidade no Brasil. Em ratos já está demonstrado que a
infusão endovenosa de células estromais da medula óssea induz angiogênese na
zona peri-isquêmica pós AVCI. Mais ainda, em camundongos foi verificado o
aparecimento de células endotelias e de células expressando o marcador
neuronal Neu-N após transferência de células de medula óssea em animais
submetidos à isquemia cerebral experimental8. Essa plasticidade, com o
aparecimento conjunto de precursores neuronais e endoteliais na área
isquêmica, abre grandes esperanças para o uso de CT em terapias celulares
neuro-restaurativas. Esse mesmo caminho deverá ser trilhado para o uso de CT
autólogas na redução de morbidade em casos de lesão da medula espinhal.
Todas essas pesquisas envolvem, preliminarmente, a identificação in vitro
dos fatores de diferenciação e de direcionamento das CT ao tecido alvo do
tratamento.
Perspectivas futuras
O potencial terapêutico das CT vem se afirmando como altamente promissor. A
caracterização cada vez mais detalhada de novos tipos de CT em tecidos
maduros e a exploração de fontes alternativas de CT, como o sangue de cordão
umbilical, é uma linha de pesquisa relevante no rumo da medicina
regenerativa. Mas não é o único caminho a ser trilhado nesse rumo. De grande
interesse é também o estudo das CTE9. O uso de CTE está na agenda dos
governos em muitos países, com fortes pressões a favor e contra o uso de
blastocistos humanos oriundos de fertilização in vitro como fonte dessas
células (12). Muitos países, como os EUA, liberaram os estudos com as
linhagens de CTE já existentes (cerca de 78), mas proibiram temporariamente
a obtenção de novas linhagens. Outros, como o Reino Unido e Israel, têm
postura liberal quanto ao uso experimental de embriões. No Brasil, no
momento em que este artigo é escrito, a situação ainda está indefinida. É
absolutamente certo que a pesquisa com CTE pode abreviar o tempo necessário
para se dominar os caminhos que levam as CT a se transformar em células do
sangue, dos músculos ou do sistema nervoso. Existe a possibilidade de que,
para algumas aplicações terapêuticas, essas células venham a se mostrar
imprescindíveis. A comunidade científica não pode arbitrar esse debate, onde
se joga uma parte do futuro de toda a humanidade, mas deve dele participar
ativamente porque a difusão do conhecimento é indissociável da atividade de
pesquisa.
Claudio L. Lottenberg é pesquisador do Hospital Israelita Albert Einstein.
Carlos A. Moreira-Filho é pesquisador do Instituto de Ensino e Pesquisa
Albert Einstein e do Depto. de Imunologia do Instituto de Ciências
Biomédicas da USP
Referências
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therapeutic applications. Curr Opin Nephrol Hypertens 12:447-454, 2003.
2. Rocha V e Gluckman E. Allogeneic stem cell transplantation using cord
blood stem cells. ICST meeting, Phoenix AZ, www.cellteraphy.org/Abstracts/Speakers/SAO12,
2003.
3. American Academy of Pediatrics, Work Group on Cord Blood Banking. Cord
blood banking for potential future transplantation: subject review (RE9860).
Pediatrics 104:116-118, 1999.
4. Grupo Brasileiro para Implantação de Bancos de Sangue de Cordão
Umbilical. Documento de trabalho. Foz do Iguaçu, 1999.
5. Semsarian C. Stem cells in cardiovascular disease: from cell biology to
clinical therapy. Intern Med J 32:259-265, 2002.
6. Strauer BE, Brehm M, Zeus T e col. Repair of infarcted myocardium by
autologous intracoronary mononuclear bone marrow transplantation.
Circulation 106:1913-1918, 2002.
7. Menashé P, Hagére AA, Vilquin J-T e col. Autologous skeletal myoblast
transplantation for severe postinfarction left ventricular dysfunction. J Am
Col Cardiology 41:1078-1083, 2003.
8. Hess DC, Hill WD, Martin-Studdard BS, Caroll J, Brailer J, Carothers J.
Bone marrow as a source of endothelial cells and NeuN-expressing cells after
stroke.Stroke 33:1362-1368, 2002.
9. Rosenthal N. Prometheus's vulture and the stem-cell promise. N Engl J Med
349:267-274, 2003.
Fonte: http://www.comciencia.br /contato@comciencia.br (© 2003 - SBPC/Labjor
- Brasil)
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