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Uma outra escuta

Dorli Kamkhagipesquisadora mentora

A função do psicanalista necessita ser constantemente repensada. Esta prática de rever lugares e posições nos permite entrar em contato com partes de nossa essência que muitas vezes encontra-se em lugares soterrados. Quando estamos em contato com nossos pacientes, na verdade estamos também perto de nossos afetos, desejos e medos. Esta possibilidade de estar conectado como o outro se faz possível se pudermos estabelecer uma outra via de acesso.

Esta via que se abre entre a escuta do analista e a fala do paciente, é permeada por outras sonoridades que poderão se fazer decifráveis se ocorrer o ato da verdadeira escuta. Segundo o Dicionário Aurélio: Escuta.- Ato de escutar. Escutar-1-Tornar-se ou estar atento para ouvir. 2-Atender os conselhos de.3-Prestar atenção para ouvir alguma coisa.

Estas explicações podem falar sobre o ato de escutar, mas me parecem um pouco empobrecidas para darem conta do que pode ser “a escuta analítica”. No seminário que foi desenvolvido neste semestre no programa de Pós-Graduação da PUC (2004), sob a direção do professor Alfredo Nafah, pudemos nos dar conta destas nuances contidas no próprio ato de  escutar.

Através de materiais musicais e textos teóricos passamos a ter uma outra compreensão de como esta escuta analítica poderia se dar. Passamos a ter uma maior percepção de como era a escuta, assim como a sensibilização de cada um.Comecei  a sentir  e perceber como é difícil  e por vezes doloroso escutar ao outro, ouvindo a si mesmo.

Esta possibilidade de lidarmos com o som que advém do outro, passa a instaurar novas sonoridades as quais, com o nosso acolhimento, podemos ter acesso a revelações que estiveram tão próximas a cada um de nós. A revelação que foi ficando mais transparente; foi a própria percepção de que muitas vezes estamos surdos para poder realmente escutar.

Será que realmente conseguimos escutar aos nossos sons internos? Talvez os ruídos que ouvimos nem sempre têm a sonoridade de uma linda harmonia. Entrar em contato com esta nossa realidade psíquica é perceber o quanto o terapeuta também é falível de não ouvir.

O material contido no artigo O terceiro ouvido, de Theodor Reik, foi me ajudando na percepção de novos sentidos queestes outros sons” poderiam ter. Gostaria de repetir a citação do autor:

neste sentido a psicanálise não é tanto uma conversa de coração- para coração, mas uma conversa de impulso -para impulso, um diálogo inaudível mas altamente expressivo. O psicanalista deve aprender como uma mente fala com outra para além das palavras, e em silêncio. Ele precisa aprender a escutarcomo o terceiro ouvido”.

Este texto nos permite perceber o quão sutil é o caminho que pode se estabelecer na relação paciente-analista. De que lugares escutamos o outro? É sempre de dentro de um espaço interno do terapeuta (ou daquele que ouve)?

Reik, neste trabalho, tem a ousadia de se colocar o tempo todo, tirando o lugar de “semi-deus”, que muitos analistas desejam ter. Ele instaura um caminho na busca de verdade, que está sempre relacionado com as questões humanas. Acaso os analistas também não cometem suas faltas e muitas vezes para utilizar a expressão corriqueira entre os jovens “pisam na bola”?

A coragem de poder se expor sendo o próprio objeto de uma pesquisa dentro de um trabalho científico não o invalida, ao contrário. Theodor Reik aponta constantemente para que os analistas não esqueçam de analisar-se. Não somente as teorias dão conta de nos auxiliarem em ‘nossas escutas’, mas existem outros aspectos que deveremos levar em consideração. Novamente retornando a Reik:

Os instintos, que indicam ,apontam, miram e aludem,alertam e traduzem, são, algumas vezes mais inteligentes do que nossa inteligência consciente.

Quando conseguimos escutar o outro (aquele que nos fala), e estarmos conectados com os nossos sentimentos, poderemos atingir aspectos que nos ajudam na compreensão do que este processo está trazendo. Percebo muitas vezes a angústia que o não saber gera em alguns analistas: a minha própria experiência com alguns pacientes, que me fazem sentir que estão falando um outro idioma.Talvez esta dificuldade de lidar com este não saber possa dificultar que se estabeleça uma “diferente escuta

Muitas vezes percebo agora “a posteriori” o quanto estive presa na função, e na forma que eu julgava ser a escuta do analista. Esta forma de atuação me levava quase que a um lugar de tradução, daquilo que me era dito pelo outro. Através deste ato de traduzir eu me assegurava, ao mesmo tempo em que me tranqüilizava, de que estava tendo uma compreensão. Acredito que de fato isto também acontecia, mas ao mesmo eu estava limitando uma oportunidade rica e única de aprender novas formas de escutar.

Segundo Nafah Neto, no trabalho O terceiro ouvido, Nietzsche e o enigma da linguagem;

Transpor essas questões para o universo psicanalítico eminententemente apoiado na linguagem-torna possível constatar o quanto nós, psicanalistas, somos também assolados por essa ilusão. Ouvir um analisando dizermeu pai”, “minha mãe”,”meu filho” e continuar a frase numa afirmação qualquer, nos geralmente, a ilusão de que sabemos do que ele fala. Ou se não sabemos ainda, saberemos em algum momento (desde que assolados pela vontade de verdade). Uma grande parte das concepções psicanalíticas resvala e rodopia nessa busca, ainda que muitas vezes a disfarce sob o termoverdade inconsciente”.

Esta citação nos revela a pseudo necessidade que pode ser criada nesta busca de compreender. Esta necessidade de que todo o material do paciente seja por nós entendido e decodificado, muitas vezes leva a um total movimento de não ouvir ao outro. É como se houvesse pistas que necessariamente necessitam serem seguidas de uma única forma.

Por que será que não podemos aprender a escutar também aquilo que a nossa mente, o nosso silêncio, e a nossa reflexão nos falam?

Muitas vezes junto a falas de pacientes sou surpreendida por sensações que me acompanham. É como se eu tentasse percorrer o caminho pelo qual o meu paciente me conduz indo em busca de sua sonoridade.

Através do encontro com estes materiais na compreensão dos sons que se estabelecem nas relações analíticas, tive algumas lembranças. A recordação muito antiga e confortadora: era de ouvir a voz de minha mãe me chamando. Esta forma tão peculiar de ouvir este chamado, que tocava tão forte em meu coração e que ainda hoje, passados 30 anos, ainda ecoa forte dentro de mim. O som que veio à minha memória era o meu nome sendo chamado Doli, (não Dorli) de um jeito que me trouxe um afeto muito antigo.

O meu nome deveria ser uma alusão ao pai de minha mãe que falecera nos campos da Polônia no final da Segunda Guerra. O seu nome era David, que seria dado ao esperado filho que (nasceu menina). Então, o meu nome, “DORLI”, foi esta criação que de alguma forma tentava ser uma homenagem ao meu avô.

O som do meu nome, que tanto me fez reviver a relação com minha mãe, fui escutá-lo anos mais tarde num trabalho de análise. Eu estava há vários anos em análise, quando me dei conta que uma das formas que a minha analista me chamava era uma espécie de Doli. Esta descoberta de como esta sonoridade me reportava a esta pessoa tão querida de minha vida, pode ser descoberta tempos depois.

Nenhuma das pessoas de minhas relações utilizava esta forma, e também produzia em mim esta sensação de estar ouvindo algo muito próximo e familiar. Embora o meu nome fosse incomum e muitas vezes complicado das pessoas entenderem, para mim era difícil ter um nome diferente e eu não conhecia nenhuma pessoa que tivera este nome. Esta sensação de aconchego que pude vivenciar através de escutar a minha analista dizer o meu nome acalentava algo do meu passado por me sentir tendo um nome estranho.

Eu sempre pensei que a forma como alguém pronuncia o nosso nome revela um pouco do que significamos para ela. Apesar de acontecerem silêncios muito grandes, eu podia sentir uma sonoridade, que o estar presente de minha analista produzia em mim. Às vezes eu pensava que ela dormira ou, quem sabe, desaparecera, mas eis que uma palavra conseguia me trazer tantos significados.

O fato de ter esta coincidência ou esta sonoridade que eu julgava ser igual a forma com que minha mãe me chamava (amor de transferência), esta percepção sonora abria um campo no qual antigas sonoridades pediam novamente para emergir.

Hoje, passados muitos anos deste trabalho analítico, eu me dou conta de quanto ele pode ajudar na reconstrução de meu mundo interno, que necessitava recuperar antigos sons. Atualmente atendo em análise uma jovem estrangeira que veio morar no Brasil. Esta mudança ocorreu num primeiro momento pela mudança de posto de trabalho de seu marido de nacionalidade diferente da sua. Nesta vinda ao Brasil acabou se apaixonando por um brasileiro.

Nas primeiras sessões eu tinha a sensação de estar com um bebê na sala (embora ainda tenha, atualmente está um pouco diferente). A paciente, uma jovem elegante e simples, apresenta em cada sessão movimentos leves e voz quase inaudível, embora entenda português e fale (muitas palavras eu percebo que preciso traduzi-las). A comunicação que foi se estabelecendo entre nós duas foi ocorrendo de uma forma lenta e de certa maneira sentia que ela trazia uma história de medo e abandono. Estas percepções foram se confirmando ao longo do tempo; a mãe da paciente era uma mulher muito doente (transtorno bi-polar) e era alcoólica.

Esta vivência de ter uma mãe muito instável e doente a fazia ter uma grande necessidade de manter os horários, assim como os filhos muito bem cuidados. O motivo pelo qual ela estava há um ano novamente no Brasil, se referia ao amor de sua vida. A paciente, que vou chamá-la de Rute, havia se separado de seu marido, um homem que, segundo ela, era sádico e um pouco torturador. Rute havia se apaixonado por este amigo brasileiro, e ele também estava se separando de sua mulher. Embora ela tivesse ido embora do Brasil, eles continuaram a se comunicar e a se encontrar através do mundo, como amantes.

Para Rute, viver no Brasil significava uma nova vida, e uma outra possibilidade de tentar ser feliz (segundo ela com o homem que ela desejava viver). A análise era um espaço no qual ela vinha para se alimentar. Esta sensação se traduzia na forma como ela repetia sempre as minhas palavras finais. Era como se ela tivesse a necessidade de senti-las. O som de sua voz era tão baixo que eu me perguntava se eu estava começando a ter problemas de audição.

Esta sensação de fazer um esforço maior para escutá-la e muitas vezes para que ela me entendesse por causa da dificuldade da língua criou um outro campo. Eu comecei a perceber que eu também falava de uma forma mais próxima; às vezes eu achava que falava com um bebê. Outras, eu escutava este bebê, que parecia compreender. Esta forma de comunicação que foi se estabelecendo entre nós, absolutamente inédita para mim, foi me permitindo enxergar como era importante poder estar aberta à outras comunicações.

È importante dizer que Rute teve um período de muita tosse (quase pneumonia), eu inclusive fiz a indicação de um médico. Nestes encontros nos quais ela tossia, eu me continha para deixar que ela expressasse a dor e tristeza. Era a sua forma de estar comigo. Eu começava pouco a pouco aprender através deste vínculo o quanto cada suspiro, ou certo gemido podia significar.

A forma como ela me tocava (na hora de cumprimentar, entrada e saída) era um misto de abraço e fuga. Os pensamentos que me surgiam é que ela devia ter tido muita solidão. Às vezes me pegava viajando, o quanto para ela significava estar comigo: poder receber o leite de uma mãe que tinha condições de alimentá-la e contê-la.

Era interessante notar que ela sempre subia as escadas carregando algo na mão, chá ou uma bolacha. Ela passava a sessão inteira segurando em suas mãos algo para comer. Foi muito importante para mim neste trabalho não me preocupar somente com a técnica, mas adentrar nestes conteúdos mais antigos que estavam contidos nos gestos, quase de um bebê. E também na forma como ela podia verbalizar.

Esta análise continua, três vezes por semana, propiciando um espaço no qual eu tenho podido me abrir para esta outra escuta; assim como estar em contato com as minhas angústias que este atendimento opera em minha pessoa.

Continuando esta reflexão sobre como a escuta pode operar, lembrei-me de um trabalho de análise de grupo com um grupo de senhoras na PUC. Neste trabalho eu tinha muitas vezes a sensação de não conseguir entender o significado de tantas falas. Havia muitas questões implicadas:

1- O grupo era só constituído por mulheres.

2- As participantes deste grupo eram todas acima de 58 anos.

3- Este grupo tinha um tempo limitado para terminar (10 meses).

Todas estas questões eram relevantes, mas o fato de eu estar trabalhando com estas senhoras que traziam o tempo todo questões ligadas às finitudes e alguns medos, produzia em mim muitas vezes sensações de não compreensão. Era como se em alguns momentos eu tivesse a sensação de não conseguir decifrar os conteúdos que estes sons continham.

Numa destas sessões na qual se trabalhava o lugar de ser sogra, e o que isto significava, eu percebia em mim uma sensação de grande cansaço. Ao mesmo tempo em que algumas traziam sensação de viverem “um outro tempo”, surgiu fortemente o tema da sexualidade de uma das participantes.

Percebia que havia dois movimentos o tempo todo, uma negação do envelhecer; assim como uma tentativa de resgatar algo que fora e para alguma delas ainda era tão importante: a sexualidade. Estes temas e a forma como emergiam me pareciam tão difusos, que provocaram em mim uma sensação de torpor acompanhada de certa surdez.

Eu me dava conta de que algo muito forte também se passava comigo. A sensação era a de que eu não dava conta deste material. Numa noite (depois da sessão), fui ao Teatro Municipal assistir ao Ballet Russo Bolschoi. Estava com o material da sessão e começava a perceber que o movimento do grupo, assim como as suas demandas, não estava podendo ser por mim entendidas.

E ao ouvir a forte música russa, percebia então que não havia uma articulação com a dança (movimento do grupo). A minha função como coreógrafa desse grupo (terapia), deveria ser a coordenação de algo que eu sentia me escapar. Talvez naquela época achasse que a função do analista deveria ser em ter recursos para coordenar os acordes sonoros assim como os passos da dança tão forte que se passava entre nós.

Dança que trazia movimentos de vida permeados por certo desejo também de parar com tudo. Quem sabe estava contido um desejo de morte, movimento que tanto me incomodava, pois de alguma maneira mostrava que talvez eu fracassasse. Um dos sentimentos importantes que me surgiram na noite do espetáculo do Bolschoi foi a crítica que eu havia lido horas antes no jornal, a qual dizia:

O ballet do Bolshoi representa a dança mais popular, ou como é conhecido na Europa e nos meios artísticos expressa a dança dos pobres. O ballet Kirova tem uma maior representação com os mais abastados representa uma parte da burguesia e dos outrora nobres.

Uma questão surgiu imediatamente (caiu a minha ficha). O grupo que vinha à PUC trazia conteúdos de um passado de certa riqueza, intelectualidade, participação na vida pública. Mas neste momento surgia esta outra face, empobrecida, que para algumas significava não ter condições decentes. È interessante notar que embora algumas das participantes se apresentassem muito bem trajadas (cashemere, etc.) estes também eram resquícios de uma outra época. Esse trabalho, de alguma forma quando comecei a escutá-lo de uma nova maneira, mostrou-se capaz de recuperar antigas partes e histórias de suas vidas.

Esta nova escuta que não era só minha, mas começava também a se fazer presente entre elas, era um movimento na recuperação de antigas “dignidades” esquecidas. Quase no fim desse grupo eu havia sonhado com algumas delas: eu estava numa antiga mina, e não sabia o que aquele material que eu havia encontrado significava. Uma delas, que havia morrido durante esse trabalho (foi a minha primeira paciente que falecera), aparecera neste sonho me dizendo:

“Dorli, você encontrou algo de muito precioso, é um material vulcânico.”

Após este sonho eu comecei a me dar conta da importância desse trabalho, que ao mesmo tempo busca o magna mais antigo. Penso no ballet Bolschoi e no ballet do grupo, e na dança que se desenvolve através da possibilidade que o trabalho de análise instaura. O poder escutar - sem que os nossos preconceitos, medos, ou simplesmente o ato em si -, pode propiciar uma outra via de acesso, no qual ambos saem transformados dessa experiência.