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PRIVILÉGIOS
DA
TERCEIRA
IDADE
João Ubaldo
Ribeiro
escritor
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Já
começa
por
esse
negócio
de "terceira
idade".
Todo
mundo
sabe
que
não
há
primeira,
nem
segunda,
nem
terceira
ou
quarta
idade
— existe
só
a
idade
que
o
sujeito
tem
mesmo,
que
nunca,
aliás,
vale
nada.
Idade
só
vale
para
o
futuro
ou
o
passado.
Jamais
para
o
presente,
porque
mente
quase
todo
mundo
que
afirma
estar
satisfeito
com
a
idade
que
tem.
Não
está.
Quando
é
menino
(não
vou
fazer
aqui
feito
americano
e
me
referir
explicitamente aos
dois
sexos;
todo
mundo
sabe
que
estou querendo referir-me aos
dois
e
não
tenho
culpa
de a
gramática
inglesa
complicar
a
fala
politicamente
correta
deles e,
por
sinal,
esse
negócio
de politicamente
correto
também
enche o
saco
das
pessoas
normais),
quer
ser
mais
velho,
para
poder
fazer
o
que
os
mais
velhos
fazem, notadamente extraordinárias
burrices,
tais
como
fumar
e
beber.
Quando
é
rapaz
e
já
se tornou
um
farrapo
humano
capaz
de
filar
um
cigarro
de
alguém
que
acabou de
conhecer
ou
mesmo
não
conhece,
quer
ser
mais
velho
para
poder
pegar
as
mulheres
que,
nessa
fase,
o consideram
um
pirralho
(a
palavra
hoje
deve
ser
outra,
mas
deixei de
atualizar
o
vocabulário
há uns vinte
anos,
deve
haver
esse
privilégio
na
lei
também).
Quando
passa
essa
idade,
não
tem
grana
para
sair
com
as
mulheres
e é
obrigado
a
gastar
tempo
defendendo
algum,
além
da
odiosa
e
sempre
somítica
mesada.
Quando
a
grana
melhora,
se
melhora,
o
trabalho
piora
e tem
pelo
menos
uma
mulher
que
gruda e
toma
conta.
E
por
aí
vai,
todo
mundo
se queixando
até
o
dia
de
encerrar
o
expediente
neste
vale
de
lágrimas.
A
terceira
idade
vem,
como
se sabe, acompanhada
pela
agravante
de a
gente
virar
tio.
Não
tem
coisa
mais
insuportável
do
que
virar
tio
de
qualquer
fedelho
que
apareça.
Ou
fedelha:
neste
caso,
cabe a
referência
explícita
ao
sexo,
principalmente
quando
a
fedelha
tem 25
anos,
é a
cara
da Nicole Kidman e
namora
um
xibunguinho
qualquer
que
ainda
nem
bigode
pode
ter.
Não
sei se cabe
aqui,
neste
jornal
de
família,
sugerir
a
eloqüente
resposta
habitual
dada
pelo
meu
amigo
Luciano
Quibe
Frito,
rico
milionário
árabe,
que
é
um
pouco
mais
velho
do
que
eu,
mas
não
se
queixa
muito
da
idade,
não
só
porque
o
dinheiro
disfarça
bastante
os
cabelos
brancos,
como
porque
deve
tomar
Viagra na
veia.
A
resposta
é
um
pouquinho
ríspida,
mas,
que
diabo,
pelo
menos
hoje
resolvemos
que
não
seremos politicamente
corretos.
Ele
responde dizendo “meu
jovem,
eu
não
posso
ser
seu
tio
porque
não
tenho irmã na
zona”,
é
isso
que
ele
diz e
eu
também
devia
ser
macho
o
suficiente
para
dizer
e
um
dia
ainda
digo.
E tem
um
rosário
interminável
de
humilhações
juridicamente consagradas, todas
um
complô
para
que
subamos ao
Pão
de
Açúcar
e
nos
joguemos do bondinho, o
que
só
não
faço
porque,
no
necrológio,
ainda
ia
sair
que
eu
sofria das
faculdades
mentais.
Outro
dia
mesmo,
estou
eu
trêmulo
no
banco,
eis
que,
em
bancos,
fico invariavelmente
trêmulo,
assim
como
em
cartórios
e
repartições
sortidas, esperando
ser
preso
(espero
sempre
ser
preso,
é
por
isso
que
quero
me
inscrever
finalmente
na
Ordem
dos
Advogados,
para
ter
aquela carteirinha
que
dá
direito
a
não
ser
preso
numa
cela
de
oito
metros
quadrados
com
mais
120
companheiros),
quando
um
caixa
me
acenou:
—
Gestantes
e
deficientes!
— berrou
ele.
Inspecionei
minha
barriga.
Está
certo
que
não
se
trata
propriamente de uma
tábua
de
passar,
mas
não
chega
a
parecer
de
oito
meses,
como
indicava a
cara
dele,
além
de
que
mantenho a
expectativa
de o
bigode
e a
careca
sustentarem
minha
aparência
masculina
—
pois
a esta
altura,
com
mais
de 60
anos
de
prática,
fica
um
pouco
tarde
para
mudar.
—
Gestantes
e
deficientes!
— repetiu
ele,
depois
que
olhei
em
torno
e achei
que
não
era
comigo.
—
Mas
eu...
— tentei timidamente
objetar.
— É a
mesma
coisa,
tudo
a
mesma
fila,
terceira
idade
também!
É
por
essas e outras
que
não
tenho
arma
e
muito
menos
ando armado,
porque,
numa
hora
assim,
a
pessoa
pode
experimentar
a
chamada
privação
de
sentidos
(isso
se dizia no
meu
tempo;
acho
que
hoje
se diz “surto”,
não
é?
ou
era
há
dez
anos?
bem,
é uma
parada
— gostaram? — dessas
qualquer)
e
cometer
um
tresloucado
gesto,
no
caso
descarregar
minha
centenária
garrucha
no
ofensor.
Se
ele
complementasse
me
chamando de
tio,
acho
que
eu
encerrava a
conta
no
banco
e
talvez
até
levasse uma gruja de 15
centavos,
a
título
de “abono
de
terceira
idade”,
eles
são
capazes
de
perpetrar
isso.
Mas
não
fiz
nada,
arrastei
meus
pobres
pés
de
velho
até
a
fila
indicada e
lá
fiquei
um
bom
tempinho,
até
porque,
e
este
é
outro
requinte,
ela
era
mais
longa
que
as outras.
Na
Bienal
do
Livro,
onde
entrei
como
autor,
uma vezinha
só,
pude
observar
que
estavam
isentos
de
pagamento
os
menores
de
um
metro
e
maiores
de 60
anos.
Quer
dizer,
eu,
meus
amigos
e o
Bloco
dos
Anões
da
Praça
Onze,
ou
qualquer
outra
agremiação
que
congregue os — é
assim
que
se diz “anão”
hoje
em
dia,
isto
eu
aprendi —
verticalmente
prejudicados. Numa
só
semana,
fui chamado de
deficiente,
anão,
transexual
tarado
e
futura
mamãe.
Tinha
até
pensado
em
experimentar
um
teste
pessoal
da
passagem
de
ônibus
grátis,
só
pelo
gostinho,
mas,
como
agora
sei
que
seria
pelo
desgostinho,
não
vou
experimentar
nada.
Aliás,
aguardo
ansioso
a
próxima
medida,
que
provavelmente será
proibir
os terceiro-idadistas de
sair
de
casa,
para
não
expô-los à
jângal
da
cidade
grande.
Concordo, concordo,
contanto
que
eles
ponham uns
boys
aqui,
para
cuidar
dessas coisinhas de
banco
e
correio
para
nós,
coroas
do
prédio.
E
contanto
que
eles
não
chamem a
gente
de
tio,
é
claro.
Tio
é a
mãe
e
eu
não
tenho irmã na
zona
etc. etc.
Fonte:
Jornal O
Globo |
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