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Médica de família Ricardo Freire* Leio por aí que um dos principais problemas da saúde do brasileiro reside no costume generalizado da automedicação. Somos um povo viciado em remédios que corre para a farmácia como quem vai passear no supermercado. Felizmente, nunca precisei recorrer à automedicação. Para isso eu já tinha a Mãe. (Parênteses: na minha terra ninguém fala “mamãe” ou “a minha mãe”. Em Porto Alegre a mãe da gente é a Mãe, que normalmente é casada com o Pai. Fecha parênteses). Se a mãe não fosse dona-de-casa, certamente teria sido enfermeira. Seu karma era cuidar das pessoas. Quando a mãe tinha 16 anos, o vô morreu e a vó teve que ir tomar conta do armazém. A mãe ficou em casa, cuidando dos dois irmãos pequenos (um de 5, outro de 11). Menos de duas décadas depois, o caçula se formou médico, proporcionando uma utilíssima ligação direta entre a mãe e a medicina. A mãe teve cinco filhos – e incontáveis desculpas de se consultar, pessoalmente ou por telefone, sete dias por semana, a qualquer hora do dia ou da noite, com o tio. Lá pelo terceiro filho (eu), a mãe já tinha um repertório completo de procedimentos testados e aprovados. E um estoque muito bem fornido de remédios para qualquer eventualidade. A mãe tinha uma queda toda especial pelos antibióticos. Ela nunca me disse isso, mas tenho certeza de que, na sua cabeça, os antibióticos eram os equivalentes farmacológicos do leite – aliados poderosos na sua luta para fazer os filhos crescerem robustos e saudáveis. Anos mais tarde, ela se lamentaria por nossos dentes serem menos brancos do que deveriam. Mesmo assim, tenho certeza de que faria tudo de novo da mesma maneira. De toda a prole, ninguém deu tanto oportunidade para a mãe atuar quanto a número 4 – um ano e meio mais nova do que eu. De garganta frágil, desde pequenina essa minha irmã exigia muitos cuidados – e muitos antibióticos. Frentes frias, mudanças bruscas de temperatura e correntes de ar (conhecidas lá em casa, por “vento encanado”) eram monitoradas pela mãe com toda a atenção do mundo. Antes mesmo de completar sete anos eu já estava familiarizado com a palavra “estafilococos”. Quis o destino que isso tivesse um final abrupto: como era moda na época, minha irmã foi submetida a uma cirurgia – muito bem sucedida, diga-se – para extrair as amígdalas. Tudo o que restou foi a minha inveja pelos três dias em que minha irmã foi tratada a sorvete de creme da Kibon. No panteão dos medicamentos queridos da mãe, pelo menos um não era tarja-vemelha: o antigo Merthiolate. Bastava cair o primeiro dente-de-leite para que o filho fosse promovido a gente, e o mercúrio inocente fosse substituído pelo Merthiolate ardido. Se bem que, nesse caso, acho que todas as mães deviam ser iguais à mãe. Afinal, aquele merthiolate de antigamente funcionava como uma metáfora perfeita para o processo de educação: meu filho, eu sou obrigada a fazer isso, vai doer um pouquinho, mas pode deixar que eu assopro. Uma vez paguei caro por não seguir direitinho um tratamento receitado pela mãe. Eu não tinha nem 19 anos e já morava sozinho. Certo dia acordei com febre e a garganta fechada. Fui me arrastando até o orelhão mais próximo. A mãe, claro, imediatamente receitou sua marca favorita de antibiótico. No dia seguinte, já melhor, fui trabalhar normalmente. Contei minha história, e os colegas ficaram horrorizados com o fato de eu recorrer a antibióticos sem receita médica. Em vez de dizer “mas a mãe é irmã do clínico”, e acrescentar “e criou cinco filhos”, eu calei. Pior, seguindo o conselho médico de meus colegas, parei de tomar o antibiótico. E não contei para a mãe. Claro que a amigdalite voltou com a intensidade de um abalo sísmico japonês. E então eu aprendi que, sim, pode existir algo mais nocivo do que a automedicação; a autodesmedicação. A mãe acabou indo cedo demais – talvez porque nós nunca tenhamos levado a sua pressão alta tão a sério quanto ela levava as nossas dores de garganta. Outro dia me peguei pensando como a mãe reagiria ao fim daquele antigo merthiolate. Como será que ela faria com os netinhos, agora que o merthiolate não arde mais? Acho que ela continuaria soprando mesmo assim. Porque, pensando bem, não é o remédio que cura. É o sopro de quem está cuidando de você. *Ricardo Freire – Crônica extraída da Revista Ser Médico. Publicação do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo. |
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