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Comunidade: um desafio para a sociedade

Patricia Branco pesquisadora mentora

Falar sobre as formidáveis iniciativas civis e atividades cidadãs que se expandem em número sem precedentes, abrangendo sobretudo a variedade de formas, propostas e dinâmicas que surgem na realidade social para atender a população, pode ser considerado um ato de muito prestígio na atualidade. Além do poder das comunicações sobre o assunto, percebe-se que homens e mulheres, sem distinção de classe social ou status profissional, vêm se interessando significativamente pela participação em pequenas ou grandes causas cidadãs. Todos os dias, vozes anônimas e entusiasmadas encantam ouvintes, que por sua vez, impressionam-se muito, quando escutam belas e apaixonantes estórias sobre as experiências do locutor em algum trabalho social existente.

Na atualidade, novas formas institucionais ganham vida e corpo, fazendo surgir uma expressão, que passa a ser conhecida e reconhecida pelas mais diversas culturas, meios e línguas nacionais. É neste cenário político, que surgem as ONG´s ou as organizações não governamentais, cujo trabalho diário desencadeia múltiplas transformações no cotidiano de milhões de pessoas; atingindo e alterando dimensões inimagináveis da estrutura social do mundo e, mais especificamente, do Brasil. Além das ONG´s, entidades filantrópicas, entidades de direitos civis, movimentos sociais, organizações sociais, agências de desenvolvimento social, órgãos autônomos da administração pública, fundações e institutos sociais surgem e se disseminam na mesma realidade, serviços de apoio, orientação e educação ao maior número de pessoas das comunidades, das quais, tais organismos são integrantes.

Sabe-se, que através das propostas de ação e projetos sociais desenvolvidos e viabilizados pela consciência transformadora e socialmente responsável de alguns grupos da sociedade civil, milhares de pessoas são beneficiadas. Assim como se observa na realidade, crianças, adolescentes, adultos e idosos atendidos pelos serviços das instituições, tornam-se agentes de transformação social, porque passam a se perceber cidadãos de direitos civis. De acordo com os dados do PNUD, mais de 250 milhões de pessoas, tanto aquelas dos países “desenvolvidos”, quanto aquelas dos países em desenvolvimento ou “subdesenvolvidos”, poderiam ser beneficiadas através da atuação de ONG´s. E este avanço revelaria a razão da existência específica das organizações: exercitar e promover a adesão voluntária aos valores, enquanto fins em si mesmo.

Além do exercício e promoção de valores que as organizações podem desencadear, pode-se dizer que, através da solidariedade presente em muitas das organizações sociais e cidadãs da atualidade, o modo de pensar, agir, sentir e ser humano são transformados, se não radicalmente, ao menos em grande parte. Nesta dinâmica, as pessoas mobilizam o seu potencial transformador para enfrentarem causas relativas ao meio em que estão inseridas e, por essa razão, passam a compreender-se com mais profundidade através do exercício da vida em grupo, onde os relacionamentos tornam-se personalizados.

O individualismo, entendido como um poderoso mecanismo de defesa e fonte do isolamento humano, acaba se enfraquecendo a partir da lógica apresentada, porque envolvidas num espírito coletivo e solidário, as pessoas, mesmo habitando a região, “mergulham” na comunidade e, com olhar atento e crítico, aprendem a observar sua estrutura, suas dinâmicas e necessidades, e sugerem propostas que viabilizam a ampliação da qualidade de vida da população, através da responsabilização coletiva e exercício crítico da cidadania.

A cidadania, como conceito histórico, o que significa que o seu sentido varia no tempo e no espaço, deve ser considerada elemento central do processo de democratização das sociedades. E quando se fala em cidadania, não se podem vislumbrar apenas os direitos e os deveres do cidadão. Na prática, o fenômeno da cidadania já é a manifestação clara de que os indivíduos, assim considerados cidadãos e cidadãs, acessam de alguma maneira tais direitos fundamentais para a vida digna em sociedade.

O que se espera, no entanto, é que homens e mulheres encontrem ou descubram novos significados para o conceito de cidadania, a partir da realidade sentida e vivida. Esta busca permanente deverá ser permeada pela consciência de que cada realidade deve ser interpretada e compreendida a partir de referenciais específicos, que não se encontram “democraticamente dispostos” em manuais e livros. Tais referenciais sempre dependerão dos fatores que constituem a realidade de cada contexto humano e social. E, por esta razão, não será pelo caminho da reprodução de valores e ideologias alheias, mas sim pela autonomia do povo e ação política consciente da população em geral, que novas significações e sentidos para o termo cidadania, serão construídos.

Sabe-se, assim como já foi dito, que a teoria e a prática da cidadania, variam de acordo com o tempo e espaço nos quais se processam. Historicamente articulada à definição de sociedade e comunidade, a cidadania pode ser considerada a expressão de uma natureza humana e social que se cria e se recria, do mesmo modo, que organiza o modo de viver das pessoas. Através desta organização e de como as pessoas vivem suas relações sociais, a sociedade e as pessoas vão se construindo e se reconstruindo, num processo constante de reprodução de valores existentes e produção criativa de novos paradigmas, fundados a partir da lógica apresentada por R. M. MacIver e Charles H. Page:

a sociedade, no entanto, funda-se na diferença, quanto na semelhança. Se todas as pessoas fossem exatamente iguais, simplesmente iguais suas relações sociais seriam talvez tão limitadas quanto à das formigas e abelhas. Haveria poucas concessões mútuas, pouca reciprocidade.[1]

E ao se pensar sobre a possibilidade concreta de atuar socialmente pela via da concessão mútua e reciprocidade, deve-se considerar, que o terceiro setor, as comunidades beneficiadas pelas iniciativas de empresas socialmente responsáveis e as próprias organizações sociais privadas, independentemente das atividades que tais entidades desenvolvam e a que público ou públicos elas atendam, passam a compreender que os seus motores de sustentação, bem como o seu potencial evolutivo, dependem da qualidade de existência e co-existência humana.

Desse modo, palavras como: caridade, lealdade, gratidão e compaixão, assim como outras, são consideradas importantes princípios para este setor, já que enfatizam o relacionamento solidário entre pessoas e grupos, fazendo-os partilhar, não deste ou daquele interesse, mas as condições básicas de uma vida em comum. Peter F. Drucker, ajuda-nos a entender melhor essa sistemática quando diz:

a vida impele os indivíduos para fora de si próprios em busca da comunidade. A vida é a procura de sistemas, precisa ter um relacionamento, estar conectada a outros.[2]

É por esta razão que os processos de formação humana, sejam formais ou informais, e os tipos de relacionamentos e interações estabelecidas pelos sujeitos na vida em comunidade, precisam acompanhar a transformação do mundo, sendo influenciada por ela e, do mesmo modo, influenciando sua transformação. Tal processo deve, assim como já foi dito, ser consequência de uma ação humana consciente e responsável. Sabe-se, que através da vivência educacional em seu sentido amplo e irrestrito às estruturas formais de ensino, o ser humano constrói a possibilidade de transformar o mundo, a partir de progressivas alterações. Considerado este dever e esta possibilidade humana, ressalta-se que a grande tarefa de transformar o mundo, embora também realizada individualmente através de pequenas ações, não deve perder de vista a força e o poder de atuação dos grupos, das comunidades.

A sociedade civil, neste sentido, assume grande relevância social. Intensamente mobilizada, a sociedade civil vêm re-criando a estrutura da sociedade, desde o enfraquecimento do Estado do bem estar social. A grande nação, até então atendida, bem ou mal, pelo poder público, torna-se uma grande legião de desassistidos e excluídos socialmente. O mercado, também conhecido como segundo setor da economia, tendo como ética fundamental a concentração de renda e o fortalecimento das elites, acaba aprofundando as desigualdades entre as populações distintas de indivíduos. Para o sociólogo alemão Claus Offe:

os movimentos sociais, as ONG´s, as igrejas e os cidadãos mobilizaram-se para criar uma nova ordem social. É o advento de uma mudança radical nas relações entre o Estado, as empresas e a sociedade civil.[3]

Neste novo contexto social, a ação e a força repressiva do Estado, são gradativamente substituídas pelo surgimento de uma ação comunitária forte, atuante, reivindicatória e mobilizadora. As empresas, também modificadas pela nova ordem estrutural da sociedade, apreendem novos sentidos para suas ações, em vários níveis de sua hierarquia. A própria concepção de trabalho se altera. As pessoas, de modo geral, não conseguem mais suportar as conseqüências negativas do trabalho obediente a normas, inconseqüente e fundado sobremaneira, na lógica do lucro.

Assim como nos afirma D´Ambrósio:

grandes males vêm sendo perpetrados ao longo da história da humanidade, por indivíduos que executam, obedientemente e sem qualquer crítica, o que lhes é ordenado, muitas vezes apenas sugerido.[4]

O que, em minha opinião, sempre esteve em jogo na história da humanidade, é busca e o exercício da felicidade.  Ao contrário do que se pensa e se percebe na realidade, a felicidade em sua essência, não é construída a partir do vínculo indivíduo/emprego. Em outras palavras, quem pode ser realmente feliz, sendo coagido a ser obediente no mundo do trabalho? Obedientes do mundo trabalho são, na grande maioria dos casos, obrigados a se comportar dessa maneira, a fim de garantirem uma sobrevivência material razoavelmente digna e, não menos medíocre, neste mundo de paradoxos, contradições e barbárie. E isso é felicidade? Longe disso.

O retorno à essência do significado de felicidade depende, unicamente, da maneira como compreendemos a vida humana. E se a entendemos como um processo inconcluso, abrangente e complexo, do mesmo modo, consegue-se retornar à essência da felicidade quando a admitimos ser um processo criado e sustentado nos relacionamentos horizontais e solidários entre os sujeitos.

Longe da verticalidade característica dos relacionamentos autoritários, que supõem o medo e a obediência de uns em relação a outros, o mundo precisa reconhecer o poder de atuação das redes de solidariedade, assim chamadas comunidades. São elas, mais do que em outros momentos da história brasileira, as responsáveis por grandiosos e autênticos trabalhos de promoção da cidadania, inclusão social e democratização do país.

Assim como nos clareia Neto & Froes:

agora, o cidadão não mais depende do Estado para lhe conferir cidadania. Ele próprio exige cidadania, pois sabe que à falta de um Estado provedor de cidadania, ele pode contar com os serviços comunitários provedores de cidadania.[5]

No entanto, o que se pretende aqui, não é afirmar que a atuação do Estado é nula, mas justamente considerar o caráter dinâmico e decisório conquistado pelo universo comunitário nos últimos anos. Nesta dinâmica, cujas decisões são resultantes do conflito e do diálogo, os sujeitos compreendem que os problemas sociais devem ser resolvidos por todos, até como meio de convertê-los em oportunidades e soluções para toda a coletividade.

Referências

 

D´AMBRÓSIO, U.  Cumprir ordens por si só, não é suficiente como código de conduta ou obediência e normalidade: uma visão transdisciplinar. In: Esteves, Sérgio A.P. O dragão e a borboleta: Sustentabilidade e responsabilidade social nos negócios.

DRUCKER, P. A comunidade do futuro: Idéias para uma nova comunidade.

MacIver, R.M. e PAGE, C.H. “Comunidade e sociedade como níveis de organização da vida social.” In: Comunidade e Sociedade. Leituras sobre problemas conceituais , metodológicos e de aplicação. Editora USP: 1998

NETO, Francisco Paulo de Melo & FROES, César. Responsabilidade Social e Cidadania Empresarial: A administração do Terceiro Setor. Rio de Janeiro: Qualitymark Ed., 1999.


[1] R. M. MacIver e Charles H. Page. “Comunidade e sociedade como níveis de organização da vida social.” In: Comunidade e Sociedade. Leituras sobre problemas conceituais , metodológicos e de aplicação. Editora USP: 1998

[2] DRUCKER, P. A comunidade do futuro: Idéias para uma nova comunidade. (p. 23)

[3] NETO, Francisco Paulo de Melo & FROES, César. Responsabilidade Social e Cidadania Empresarial: A administração do Terceiro Setor. Rio de Janeiro: Qualitymark Ed., 1999.

[4] D´AMBRÓSIO, U.  Cumprir ordens por si só, não é suficiente como código de conduta ou obediência e normalidade: uma visão transdisciplinar. In: Esteves, Sérgio A.P. O dragão e a borboleta: Sustentabilidade e responsabilidade social nos negócios.

[5] NETO, Francisco Paulo de Melo & FROES. César . Op. cit. p. 3

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