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“... ela está tão velhinha, viveu a vida toda assim...”
Lucia Zani
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Pesquisadora Mentora
Na minha idade
a vida não é fácil, porém a primavera é bela e o amor também. Sou assistente social, e minha relação com idosos não é de agora. Meu trabalho de graduação (TG) como assistente social foi sobre os grupos operativos de terceira idade. Como profissional, estruturei em 1994 um trabalho social com idosos em um Centro de Convivência no município de Santa Maria da Serra-SP. Em 2002, em São José dos Campos-SP, estruturei e coordenei o Centro de Convivência Anos Dourados (CCAD). Paralelamente, desenvolvi um trabalho social em um asilo, uma Instituição de Longa Permanência para Idosos (ILPI). E é sobre a ILPI que vou relatar um fato que me deixou angustiada até hoje, por considerar de grande importância para os profissionais que atuam na área gerontológica. Lá, conheci Geralda da Silva, residente na ILPI desde 1977, história de vida ignorada, família e paradeiro também ignorados, e que apresentava cegueira total. Lembro até hoje de como a encontrei: postura arcada e sentada em sua cama, olhos fechados o tempo todo, não conseguia deitar e fazia sua higiene pessoal com auxílio. Ela se alimentava na cama, que ficava próxima ao banheiro para facilitar sua locomoção. Seu contato era mínimo com a realidade.
Para aumentar ainda mais minha angústia, foram constatadas também hipoglicemia e depressão. Ela precisava usar drogas farmacológicas, e a situação estaria resolvida. Dona Geralda, sem entender o que estava acontecendo, apresentava certo grau de demência ou, pelo fato de ficar tanto tempo longe de todos, ausentava-se da realidade. Chegou o grande dia. Já no hospital, a pressão arterial de dona Geralda aumentou, e ela precisou ser medicada e aguardar a pressão se normalizar. Enfim, chegou o momento. Passadas aproximadamente duas horas, aparece dona Geralda com um olho vendado. O médico nos disse que a cirurgia tinha sido um sucesso, e que no dia seguinte ela deveria retornar para tirar o tampão. Ao retirar o tampão, foi um momento muito emocionante, singular, precioso. Ela, ao nos olhar, para mim e o médico, disse: “belezura”. Eu e ele nos emocionamos. Para a segunda cirurgia foi tranqüilo. Passei a ser mito no município. Acreditei, e meu olhar foi com o olho do outro. Hoje, dona Geralda, após passar por um período de adaptação, desloca-se ao refeitório e participa dos passeios programados. No passeio à igreja, é lindo ver a facilidade com que se locomove, e seu olhar atento para tudo aquilo que está à sua volta, mencionando as cores! Um dia ela me surpreendeu, perguntei-lhe o meu nome e ela prontamente respondeu: - Lúcia, a minha belezura!
Hoje ela lê, está participando da oficina de mosaico e fazendo um gatinho. É lindo ver seu sorriso. Sorriso de alguém que vive. Quando chego, ela diz “belezura” e me abraça. Se não tivesse sensibilidade e ali estivesse apenas para cumprir minhas tarefas como uma autômota, como muitos profissionais o fazem, sem levar em conta que aquele ser é um outro e que, portanto, merece ser visto como tal, dona Geralda continuaria ausente deste mundo e não estaria vivenciando suas cores. Foi o olhar e a sensibilidade de um profissional que puderam devolver a vida a alguém condenado a esperar o seu fim. É por isso que chamo a atenção de todos os profissionais que lidam com o segmento idoso, pois têm em suas mãos a responsabilidade de tratar um ser que, muitas vezes, os próprios familiares e comunidade acham que não podem fazer mais nada porque já têm certa idade, como se velhice fosse igual a doença, condenação, cegueira, morte. Não podemos jamais dizer que alguém está condenado pela idade ou pela doença que apresenta, pois a medicina é uma área que está avançando a passos gigantes e a cura para quase tudo está a um palmo do nosso nariz. Como profissionais, não temos o direito nem o poder de condenar jamais alguém. Pelo contrário, enquanto for possível, temos o dever de informar e procurar a ajuda de outros para mudar uma situação que todos acreditam estar determinada simplesmente porque a pessoa é velha e que, portanto, não merece mais viver com qualidade. Enquanto for possível, o profissional deve sempre acrescentar qualidade aos anos em que esta e qualquer outra pessoa vive. |
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