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Como o tratamento com
células-tronco está agindo Células da esperança
"O médico disse que eu tinha uma doença sem cura", conta o eletricista Raimundo Silva. "Um dos médicos dizia que eu estava em fase terminal de vida", lembra o administrador de empresas Sérgio Soares. "Quando eu descobri que tinha diabetes, chorei, porque a doença é para sempre", diz o estudante Miguel Bretas. Em busca da cura ou apenas de uma chance, estes brasileiros estão escrevendo um fascinante capítulo da história da medicina. São os primeiros a testar um tratamento novo com células tronco. Estão vivendo a experiência de superar o medo para ser parte do futuro. Uma família inteira na torcida. Toda vez que Miguel entra na quadra de basquete tem apoio entusiasmado de quem está na platéia: pai, mãe, irmã e primos, que há oito meses passaram a torcer por um outro tipo de vitória. Miguel teria que derrotar não o time adversário, mas uma doença que apareceu de repente. O ala pivô do time de Itabira, em Minas Gerais, foi um mineirinho gorducho que adorava doces e sempre teve boa saúde. No ano passado, aos 15 anos, o susto: sede exagerada e idas ao banheiro toda hora. Miguel perdeu seis quilos em uma semana. O diagnóstico veio rápido: diabetes juvenil, doença que destrói as células do pâncreas, que produzem insulina. "Meu pai e minha mãe eram diabéticos. Meu pai amputou um dedo, uma perna e ficou cego", conta Agenor Bretas, pai de Miguel. "Falei com o Agenor que eu ia descobrir uma solução para o diabetes. Eu não queria meu filho diabético. Eu ia em qualquer lugar do mundo atrás de um tratamento", lembra Maria da Conceição Andrade, mãe de Miguel. Maria da Conceição não precisou sair do Brasil, e Raimundo Silva também não. O maranhense que ganha a vida desafiando perigos como eletricista industrial viveu momentos de terror quando perdeu as forças de uma hora para outra. "Minha resistência era zero”, lembra Raimundo. A doença que também atingiu os rins e o fígado de Raimundo é o lupus. O sistema de defesa deixa de proteger contra doenças e passa a atacar o próprio organismo. O lupus de Raimundo era agressivo e resistente a todos os tratamentos conhecidos.
"Em um sábado, a médica que é minha vizinha falou que se fosse filho dela, ela faria. No domingo, minha irmã disse que o filho dela não seria cobaia disso. Foi uma decisão muito difícil”, comenta a mãe de Miguel. "Quando eu fui, só dois pacientes tinham feito o tratamento. Um continuou a usar insulina e o outro não. Então, era 50% de chance", diz Miguel. O novo tratamento para doenças do sistema imunológico, como lupus e diabetes juvenil chegou ao Brasil pelas mãos do cientista Júlio César Voltarelli, que vive cercado de informações novas e que é também médico do Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto, em São Paulo. Durante um ano e meio ele estudou, nos Estados Unidos, a técnica de destruir as doenças e depois usar as células-tronco para criar novas defesas, um sistema imune saudável. "O que nós fazemos é destruir esse sistema imune alterado e dar uma chance para a célula-tronco repopular o organismo com o sistema imune que é novamente tolerante. Parece uma mágica, mas acontece. O indivíduo volta a ter o sistema imune semelhante ao que ele tinha quando nasceu e que não era auto-agressivo", explica o pesquisador. As células que parecem fazer mágica são as células-tronco. Estudadas nos laboratórios do mundo inteiro, elas têm alta capacidade de se multiplicar e de dar origem a diferentes tipos de células. Por isso, também são chamadas de coringas pelos cientistas, que estão empolgados. "Eu acho que nós estamos em uma revolução. Eu poderia comparar isso à descoberta dos antibióticos, ao início dos transplantes”, comenta a pesquisadora Mayana Zatz, da Universidade de São Paulo (USP). A explicação da capacidade das células-tronco está no próprio nome. Do tronco de uma árvore, nascem galhos, folhas, flores e frutos. As células-tronco também dão origem a outros tipos de célula, que formam cabelo, pele, sangue, coração. Versáteis, elas estão presentes, principalmente, nas primeiras células do embrião, no cordão umbilical e na medula óssea, o popular tutano. Tirar as células-tronco da medula é trabalho de uma máquina. Com a ajuda de remédios, elas caem na corrente sanguínea e são separadas para mudar o destino de quem já não tinha esperança. São células brancas, depositadas no meio de uma bolsa de sangue, que estão sendo usadas para tratar diabetes, lupus e esclerose múltipla, a doença progressiva que tirou os melhores anos da vida do administrador de empresas Sérgio Soares. "Naquela época, ela me tirou tudo aquilo que eu sonhava: crescer profissionalmente, ao lado da minha família, participar de tudo o que um pai normal participa com um filho ou um esposo com uma esposa”, diz ele. Na forma de surtos inflamatórios, a esclerose múltipla vai enfraquecendo os músculos, ataca a visão e o cérebro. Sérgio já não saía da cama, mal conseguia falar e não tinha forças nem para comer quando também decidiu entregar a vida nas mãos da ciência. "Deixaram bem claro que o tratamento não era a cura. Ele só iria estagnar minha doença para me dar uma qualidade de vida melhor. E o que a doença lesou no meu corpo eu jamais iria recuperar", conta Sérgio. Sérgio tirou fotos durante a internação. Miguel também registrou o tratamento inédito. E Raimundo teve cada etapa no hospital acompanhada pelas câmeras de TV. "As células saudáveis vão ficar protegidas para serem reimplantadas no paciente depois da quimioterapia”, anunciou uma reportagem da EPTV, em Ribeirão Preto.
Quimioterapia, o temido tratamento contra o câncer, é também a primeira etapa do tratamento com as células-tronco. No caso das doenças auto-imunes, é preciso ir ainda mais longe: destruir a doença e também todo o sistema imunológico. O paciente sem defesa contra doenças e infecções fica mais frágil que um bebê. Raimundo sofreu e Miguel quase morreu. "O intervalo das febres foi ficando menor”, conta a mãe de Miguel. “Um dia ele disse que ia ao banheiro. Eu achei que ele estava bem e o deixei ir. Quando ele abriu a porta, caiu em cima de mim. Nessa hora, eu pensei que ia perdê-lo." “Eu pensei que, se pudesse voltar atrás, eu voltaria”, diz o pai do jovem. Mas quando se entra em uma experiência como essa, só é possível seguir em frente. Por isso, são poucos os pacientes selecionados para a pesquisa. Apenas 44 pessoas em nove hospitais do país foram submetidas ao novo tratamento. Destas, nove morreram por causa da quimioterapia, não pelo uso das células-tronco. "A célula-tronco é segura. Mas o procedimento em si, não. Na realidade, a célula-tronco não conseguiu resgatar o sistema imunológico a tempo de evitar que os pacientes morressem", diz o pesquisador Júlio César Voltarelli. A esperança está na recuperação alcançada pela maioria dos pacientes. Miguel superou as infecções, dois dias depois de receber as células-tronco ele parou de usar insulina, remédio que garantia a sobrevivência e recheava a geladeira de casa. "A seringa está até com saudade de tanto ficar parada", brinca Miguel. Ainda é preciso cuidado, medir as taxas de glicose no sangue a cada refeição e controlar a alimentação como papai manda. "Sempre regular a boca", alerta Agenor. Os médicos ainda não falam em cura. É preciso esperar para saber qual foi exatamente a ação das células-tronco e quanto tempo dura o efeito do tratamento. Mas uma coisa é certa: Miguel já é parte da história da medicina. "Em outras doenças, nós estamos copiando os médicos do exterior, aprendendo com eles. Mas para o diabetes, eles vão ter que aprender com a gente", ressalta o pesquisador Júlio César Voltarelli. Sérgio Soares, o homem que hoje atravessa a piscina em sessões de fisioterapia saboreou a primeira conquista ainda no hospital: "Ficar de pé de novo. Depois de oito anos de luta, voltar a ficar em pé é gostoso".
O esforço para caminhar ainda é grande, mas, um ano e sete meses depois do transplante de células-tronco, Sérgio tem razões para estar cheio de esperança. "Hoje eu tenho o prazer de pegar o alimento no prato e colocar na minha boca, coisa que eu não fazia mais. Eu não conseguia levantar o talher. E hoje eu sinto essa força, sinto cada vez mais o meu corpo forte", diz. Ele só pensa em aproveitar cada momento, como as brincadeiras com o filho. As dúvidas ficam para a ciência. "Até hoje os médicos ainda não sabem o que está acontecendo com meu corpo. Mas eu sei que eles vão entender melhor e trazer mais pessoas que são portadoras de esclerose múltipla para fazer esse transplante", comenta Sérgio. Se os médicos têm perguntas a responder, os amigos de Raimundo também tem as deles. "Alguns perguntam como eu fiquei doente. Eu digo que não sei. Outros perguntam como eu estou curado. E eu também respondo que não sei. Assim como a doença, a minha cura veio do meu próprio organismo. Isso é uma coisa fabulosa”, ressalta Raimundo. Há três anos, quando Raimundo teve alta depois do transplante de células-tronco, a mulher dele, Gardênia Silva, ganhou de volta o sorriso do marido. "Agora ela está voltando a ser o que ele era antes, bonito", comentou ela na ocasião. Sem um único remédio para tomar, Raimundo é um novo homem, capaz de ir longe, como a inteligência humana, que ele aprendeu a admirar. “A vida não tem limites. E a inteligência também não. Agora eu tenho uma grande dívida com a ciência. A ciência me deu a vida de volta, me deu esperança", diz ele. Vida nova para Vanessa
Três quilos e meio de peso e nome de anjo. A chegada de Gabriel encheu a família de alegria e vai permitir que algum dia, em algum lugar, alguém possa sorrir também. A mãe dele doou o sangue do cordão umbilical. "É algo que ia para o baldinho todo dia, como a gente diz na nossa linguagem. Ia para o lixo", conta o geneticista Carlos Alberto Moreira Filho. Agora o destino é mais nobre. Em São Paulo, Ribeirão Preto, Campinas e Rio de Janeiro, já se coleta, congela e guarda o precioso sangue dos cordões umbilicais, sangue rico em células-tronco. É a rede Brasilcord, bancos públicos de cordão que, com o aval dos cientistas, foram criados para substituir os bancos privados onde pais pagavam para congelar cordões só para seus filhos. "As células do próprio indivíduo não têm efeito terapêutico no caso da leucemia. Então, não adianta guardar as células de cordão para o caso de o indivíduo ter leucemia. Depois, isso fere o princípio da solidariedade sobre o qual se baseia qualquer sociedade", comenta o geneticista. Amiguinhos que escrevem conhecem bem o sofrimento de uma pequena bailarina de Jaú, no interior de São Paulo. Em seus 9 anos de vida, Vanessa Canal desfrutou momentos de beleza e alegria nos palcos da escola. Mas desde os 3 anos Vanessa trava uma grande batalha para continuar viva. "Eu fiquei com leucemia", conta a menina.
Vanessa é tão tímida que foi preciso sair da sala e ligar de um celular para conseguir arrancar algumas palavras dela: "Eu gosto de adesivos, jogar videogame e nadar, mas eu não posso nadar." Não pode nadar, nem tomar sol. Restrições de quem passou por três tratamentos de quimioterapia. A leucemia não deu trégua. "O organismo dela mostrou que a quimioterapia não conseguiu eliminar 100% da doença. Ela eliminava por um tempo, mas a doença voltava", conta Mary Canal, mãe de Vanessa. A única chance de Vanessa era um transplante de medula, mas nem a irmã nem os pais eram compatíveis. Nos bancos de medula, também não encontraram doador com sangue quase igual ao dela, como exige esse tipo de transplante. "É difícil achar um doador. Segundo nos falaram, é como ganhar na Mega-Sena com 12 números", diz Mary. A cada ano, cerca de 3 mil pessoas no Brasil vivem o drama da procura por um doador de medula. Cerca de 1,7 mil não encontram e perdem a batalha pela vida. Batalha que agora ganha novas possibilidades de vitória. Simples de ser conseguido e menos exigente - mais fácil de ser compatível -, o sangue do cordão umbilical guardado nos bancos substitui, com vantagem, o transplante de medula óssea. "Hoje, no Japão, metade dos transplantes de medula não são mais transplantes de medula – são transplantes com célula de cordão umbilical. Esse é o futuro", anuncia o geneticista Carlos Alberto. O banco do Instituto Nacional do Câncer (Inca), no Rio de Janeiro, já tem no estoque o sangue de 3 mil cordões. O cálculo é de que, com 12 mil, qualquer brasileiro que precise encontre a salvação nos bancos públicos do Brasil. Não será mais preciso comprar de outros países como se fazia. "O banco daqui, apesar de pequeno, já forneceu cordão para São Paulo. Um deles foi encaminhado para a cidade de Jaú", revela o médico Luis Fernando Bouzas, do Centro de Transplante de Medula Óssea do Inca. Em Jaú, a chegada do cordão era a vida entrando em casa. "No dia que ele me ligou e falou que acharam um cordão com 100% de compatibilidade para a Vanessa eu não conseguia nem falar", lembra a mãe da menina. Em um hospital de Jaú, Vanessa recebeu as células-tronco do cordão enviado do Rio de Janeiro. O momento foi registrado em foto. Uma experiência que não se esquece. "Eu olhava um saquinho tão pequenininho, como se fosse uma transfusão de sangue. Ali dentro estava a vida da minha filha. Aquilo teria que entrar no organismo e gerar novas células. Pensei: ‘será que vai dar certo?’. As chances de sobrevivência ao transplante eram de 30% a 50%. É muito pouco quando se trata da vida de um filho", diz Mary.
Mas a espera não foi longa. Em poucos dias, as células-tronco se multiplicaram e começaram a produzir sangue novo e saudável. Três meses depois, Vanessa ainda toma remédio para evitar a rejeição, mas está bem. Os cabelos vão voltar a crescer, a alegria vai sendo recuperada e ela está quase pronta para fazer o que mais gosta: dançar. "Se não fosse esse transplante, eu não sei se ela estaria hoje com a gente. Eu acho que todo mundo deve conhecer esse processo de doação, que não causa dor nenhuma, problema nenhum para o bebê nem para mãe, e que salva uma vida", ressalta a mãe de Vanessa. Para o tratamento da leucemia e de muitas outras doenças, o sangue de cordão umbilical é uma riqueza que o mundo já sabe que pode guardar e trocar para o bem de todos. "Para muitas pessoas, estas células já se constituem em um tesouro, porque são salvadoras, proporcionam um tratamento. Se não houvesse essa possibilidade, essas pessoas não fariam um transplante", avalia o médico do do Centro de Transplante de Medula Óssea do Inca. Cura passo a passo
“Na penúltima volta, o segundo colocado me ultrapassou. Eu tentei recuperar no salto. Eu tinha 50% de chance de cair na frente dele e 50% de chance de acontecer qualquer outra coisa e eu não conseguir meu objetivo", conta o estudante de Direito Paulo Polido. Foi o último salto de Paulo. O tombo fatal deixou paraplégico o jovem aventureiro. Outra história, outro acidente – desta vez, de carro – e o mesmo drama. "Peguei um desvio errado e segui na contramão. Quando eu vi, tinha uma luz muito forte e o carro capotou", lembra Sérgio Guilhem Rosa. O jovem de 18 anos que queria ser advogado teve os sonhos interrompidos. "Eu não sentia nada. Foi como se tivesse passado uma guilhotina e separado metade para um lado e metade para o outro", lembra Sérgio. O pai de Sérgio, o médico radiologista Luis Carlos Rosa, foi o primeiro a ver os exames que selariam o destino do filho. "Já na primeira radiografia convencional eu vi que realmente era alguma coisa sem solução", diz ele. O motociclista Paulo também ouviu dos médicos a notícia terrível. "O primeiro diagnóstico foi de que eu não ia sair da cadeira", conta ele. Um limite para a medicina. A medula espinhal é uma complexa estrutura de ossos, nervos e artérias que só obedece aos comandos do cérebro quando está intacta, inteira. Devolver os movimentos, fazer andar quem estava na cama ou na cadeira de rodas. Esses sempre foram os grandes sonhos de médicos e pacientes. Sonhos ainda distantes, mas que começam a ganhar contornos de realidade. Com uso das células-tronco, o milagre da ciência já não parece tão impossível. Paulo e Sérgio fazem parte de um grupo de 30 pacientes com lesão de medula espinhal que testam o tratamento com células-tronco no Instituto de Ortopedia do Hospital das Clínicas de São Paulo. Elas foram retiradas da medula óssea dos próprios pacientes. Os médicos já sabem que essas células têm uma vocação para resolver problemas como inflamações. Por isso, eles provocam uma irritação na parte lesada da coluna. A idéia é atrair para lá as células-tronco que serão injetadas. "A injeção é feita na artéria que manda sangue para a medula no local da lesão. Essa injeção é feita com células-tronco. Exatamente o que ocorre, não se sabe. Mas o fato é que em 60% dos pacientes a gente tem observado recuperação dessa comunicação", revela o ortopedista Tarcísio de Barros Filho, do Hospital das Clínicas. Um ano e meio depois da injeção de células-tronco, sensações esquecidas foram comemoradas por Sérgio. "Um dia eu estava tomando banho e estava frio em casa. Eu chamei minha mãe e pedi para ela pegar um pano porque o chão onde fica a cadeira de banho, uma parte de ferro, estava me incomodando. Estava frio. Foi o primeiro indício de que alguma coisa estava acontecendo de diferente", recorda Sérgio. Paulo começou a sentir os efeitos das células-tronco ainda mais rápido: seis meses depois da infusão. "A sensibilidade, que estava mais ou menos na altura acima do joelho está quase no pé da minha perna direita. Antes, alguém pegava e eu não sentia nada”, diz Paulo. Mais do que sentir, mover. Os primeiros resultados animaram os pacientes a tentar o impossível. "Eu estava deitado na cama e ‘encanei’ de ficar tentando mexer o pé. Dali a pouco, eu olhei e vi que tinha esboço de alguma coisa”, conta Sérgio. "Eu fiquei muito emocionada porque fazia dez anos que ele não mexia nada, absolutamente nada", comemora Deni Gulhem Rosa, mãe de Sérgio. A alegria precisou de provas para ter validade científica. Os pacientes tiveram que fazer um exame que provoca pequenos choques nas pernas para saber se os estímulos estão chegando ao cérebro. As linhas que indicam isso, e que antes eram praticamente retas, já mostram movimento. O resultado é quase igual ao de uma pessoa normal. Será que esses resultados vão durar para sempre? Será que os pacientes vão recuperar os movimentos? Os médicos ainda precisam observar muito para saber, mas a vida de quem aposta na ciência melhorou. Alguns pacientes já controlam as idas ao banheiro. Paulo tem firmeza para trocar a cadeira de rodas pelo andador nos dias de trabalho no escritório, e as noites são de amor e festa para o estudante de direito. Sérgio também não espera de braços cruzados. Além da fisioterapia, faz caminhadas cada vez mais firmes com o andador, fez concurso para ser procurador da Receita Federal e está otimista com o avanço da ciência. "O que vier para mim está bom. Então, eu torço para que outras pessoas realmente consigam. Quem não quer ver um Herbert Vianna subir no palco normal novamente?", pergunta Sérgio. Batalha política e religiosa
O músico Herbert Vianna, portadores de doenças graves e a cientista que deixou o laboratório para ir ao Congresso Nacional em Brasília. Todos mobilizados pela aprovação da Lei de Biossegurança, que já passou pelo Senado e agora depende da votação dos deputados. É a lei que vai determinar se os cientistas brasileiros poderão usar nas pesquisas as potentes células embrionárias. Hoje eles só podem trabalhar com as chamadas células-tronco adultas presentes no cordão umbilical e na medula, mas é pouco perto de onde se pode chegar. "As células-tronco de cordão umbilical, classificadas como adultas, são limitas. Elas não conseguem fabricar todos os tecidos do corpo, enquanto que as células-tronco embrionárias, essas sim, conseguem fabricar todos os tecidos do nosso corpo. A gente quer que essas células regenerem a medula de uma pessoa que sofreu lesão em um acidente, por exemplo, para ela voltar a andar”, diz a pesquisadora Mayana Zatz, da Universidade de São Paulo (USP). As células-tronco capazes de fabricar tecidos como músculos, ossos e órgãos inteiros estão no centro de uma batalha política e religiosa. Os cientistas querem usar nas pesquisas células de embriões congeladas nas clínicas de fertilização. Não é o feto, mas o minúsculo aglomerado de células que sobraram do tratamento feito por casais para ter filhos. A Igreja Católica é contra. Outras religiões apóiam. "Não podemos privar a sociedade das inúmeras possibilidades terapêuticas que o embrião representa a pretexto de salvá-la", defende o rabino Henrry Sobel, da Congregação Israelita Paulista. “O embrião é um ser vivo em potencial.” "As pesquisas com células-tronco embrionárias têm esse tipo de implicação: a destruição do embrião. E cada embrião humano é uma vida humana. Destruir um embrião é destruir uma vida humana. Por isso a igreja é contra", justifica Dalton Ramos, da Comissão de Bioética da CNBB. "Eu acho antiético não poder ajudar pessoas com doenças degenerativas, adultos e crianças que estão morrendo. Acho completamente absurda a comparação de um embrião congelado com uma criança que está morrendo", diz a pesquisadora Mayana Zatz Herança de filho para mãe
A mãe dá a vida ao filho. Em troca, o filho dá mais saúde à mãe. A novidade é fascinante: a mulher grávida recebe células-tronco do feto. E essas células são usadas pelo organismo da mãe para recuperar órgãos e curar doenças. Quem descobriu essa nova rota no mapa da vida foi a médica Diana Bianchi, pesquisadora do Centro Médico da Universidade Tufts, em Boston, nos Estados Unidos. Ela identificou, por acaso, a presença das células fetais, ao examinar mães, grávidas e até mulheres que tinham feito abortos. O caso mais impressionante foi o de uma mulher com hepatite C que teve o fígado inteiramente recuperado com células-tronco, que só podem ter vindo de um feto abortado. As células que atuaram no processo de regeneração eram masculinas, e o feto era de um menino.
No laboratório, a prova final: usando camundongos, doutora Bianchi marcou as células fetais com material fluorescente. Elas apareceram em verde brilhante. Uma fêmea grávida feriu o olho. Imediatamente, as células-tronco do feto afluíram para o local da ferida e substituíram o tecido atingido. Parece milagre, mas é um fenômeno que acaba de ser descoberto pela medicina. As mães levam uma grande vantagem porque recebem dos filhos uma reserva extra de saúde. Doutora Bainchi está tentando isolar as células fetais retiradas das mães para ver se é possível, a partir delas, criar novos tratamentos. Mas nos Estados Unidos, as pesquisas mais promissoras se concentram nas células extraídas de embriões humanos. Mary Bunzel luta para salvar a vida do filho. Eli, tem 14 anos. Aos 11 anos, descobriu que é diabético do Tipo 1, a diabetes que surge na adolescência e que, se não for controlada, pode matar. Eli leva uma vida quase normal, é bom estudante e pratica esportes. No quarto, ele tem vários troféus de beisebol.
A maior diferença entre Eli e a maioria dos diabéticos se revela em uma foto: um encontro com o presidente George W. Bush, na Casa Branca, quando Eli tinha 12 anos. É que o menino se destaca como porta-voz da Fundação de Pesquisa da Diabetes Juvenil e foi a Washington para lutar por uma causa: a pesquisa com células-tronco retiradas de embriões humanos para curar não só o diabetes, mas muitas outras doenças. Pressionado por grupos religiosos, há três anos o presidente Bush limitou o financiamento pelo governo federal a um pequeno número de células-tronco retiradas de embriões. Um laboratório na Universidade de Harvard fornece a maior parte das células-tronco aprovadas pelo governo. No local, cientistas planejam fazer o que há de mais polêmico na área: a clonagem de embriões. O diretor do centro, Robert Jennings, conta que o chefe do laboratório, Douglas Melton, a maior autoridade americana no assunto, tem duas filhas com diabetes e, por isso, está pessoalmente envolvido na pesquisa. O objetivo de Melton é clonar células para produzir embriões e, a partir deles, células-tronco. Jennings insiste que só as células-tronco retiradas de embriões podem ser levadas a produzir qualquer tipo de órgão, ao contrário das células maduras, que não têm o mesmo potencial. James Heywood não tem muito tempo – ele corre contra o relógio. O irmão mais novo, Stephen, sofre de esclerose lateral amiotrófica (ELA), a doença que ficou famosa pelo físico Stephen Hawking.
Há cinco anos, a TV Globo contou a história emocionante dos dois irmãos. James era empresário na Califórnia e largou tudo para procurar uma cura para o irmão caçula. Naquela época, Stephen ainda andava. Hoje, ele vive em uma cadeira de rodas, respirando por aparelhos, e não pode brincar com o filho Alex, de 4 anos. James criou uma fundação de pesquisa e em três anos já testou 180 tratamentos e remédios para a doença. Hoje ele investe tudo na pesquisa com células-tronco retiradas de embriões. Acredita que daí surgirá a cura e torce para que ela venha a tempo de salvar o irmão. Em Nova York, o neurologista Asa Abeliovich é um dos que estão à frente na pesquisa para tratar o Mal de Parkinson. Ele já consegue criar, em laboratório, neurônios a partir de uma célula-tronco. É um neurônio que produz dopamina e poderia ser usado para tratar pacientes com Mal de Parkinson. Mas ainda não se consegue que esses neurônios de laboratório criem as conexões entre eles que existem no cérebro. Segundo Abeliovich, chegará um dia em que os cientistas estarão prontos para dar o próximo passo e começar a testar tratamentos, transplantando as células para os pacientes. Mary, mãe de Eli, se preocupa com o futuro. Ela acredita que a pesquisa das células-tronco vai trazer a cura, ainda a tempo de beneficiar o filho. Eli, com a firmeza de quem está decidido a vencer, diz que acredita na promessa da ciência porque, para ele, essa é a única esperança. Coração recuperado
Muita vida pela frente! Vida recuperada, reconquistada. A dona de casa Maria Aparecida Franco esteve no Instituto do Coração (Incor ), em São Paulo, só para mais um exame de rotina. Mas até aquele dia chegar, estava difícil viver. "Eu estava cansadíssima, já não era mais nada. Eu era enorme de rosto, de tudo. Estava inchada e esperando o final. Eles diziam que não tinha outra chance para mim", conta ela. Nem os 16 comprimidos que tomava por dia ajudavam. Com várias artérias entupidas, parte do coração de dona Maria Aparecida não recebia sangue. Ela estava perdendo as forças, e os recursos da medicina chegaram ao limite. "Ela tinha, por exemplo, uma artéria coronária totalmente obstruída. Em situação convencional, ela receberia ponte de safena onde fosse possível e aquela região ficaria descoberta, não seria tratada", diz o cardiologista do Incor Luis Henrique Gowdak. Mas já pode ser – e com células-tronco. O Incor é um dos primeiros hospitais brasileiros a usá-las para recuperar o coração de quem sofre infartos e anginas. Durante a cirurgia convencional de ponte de safena, os médicos usam seringas para retirar células-tronco da medula óssea na bacia do paciente. Depois de separadas no laboratório, elas voltam para a sala de operação e são injetadas direto no coração. No órgão de dona Maria, o resultado é visível. "No momento pré-operatório, nós vimos várias áreas onde não existia circulação sanguínea. E nós temos um segmento pós-operatório, onde vemos praticamente a normalização da circulação sanguínea”, revela o cardiologista. Sangue correndo nas veias e coração batendo forte de novo. "Faço caminhada, subo escada, limpo casa, lavo louça, faço comida, durmo de bruços e comecei a amar de novo. O coração está ótimo. Eu sinto vida, eu tenho paz, tenho alegria", comemora Maria Aparecida. Outra Maria, no Rio de Janeiro, também escreveu o nome na história da medicina. Foi depois de um derrame. "Ela não ia recuperar o movimento das pernas, nem dos braços e não ia voltar a falar. No dia seguinte eu já estava me preparando para arrumar uma cadeira de rodas para ela, porque ela ia ter alta”, conta Márcio da Costa, filho da paciente. Antes de ter alta, dona Maria da Pomacena virou notícia: foi a primeira vítima de derrame no mundo a receber células-tronco no cérebro. Elas também são tiradas da medula óssea da bacia e injetadas por cateter até o local da lesão. Sete dias depois, os exames mostravam brilho intenso na área que estava morta no cérebro. "A interpretação que nós estamos fazendo é que as células de medula óssea que foram injetadas através da artéria cerebral média se depositaram preferencialmente na região lesada e essas células estão tendo uma atividade metabólica maior do que as do restante do cérebro", explica a pesquisadora Rosália Mendez Otero, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Os médicos sabem que quem sofre um derrame pode até se recuperar naturalmente. Mas a surpresa desta primeira experiência está na rapidez e na ação intensa das células injetadas no cérebro. Novas pesquisas serão feitas com pacientes que acabaram de sofrer lesão grave na coluna, com outras vítimas de derrame, infarto e doenças incuráveis, como a de Isaac. Há 11 dias ele foi o primeiro brasileiro vítima de esclerose lateral amiotrófica (ELA) a fazer o tratamento com células-tronco. Está vivo e com esperança de que a doença pelo menos estacione, pare de destruir os músculos. "Todo dia há pacientes para os quais nós olhamos e sentimos que somos impotentes no sentido de oferecer alguma coisa útil para eles. Então, essa também poderá ser uma nova etapa. É possível que a gente tenha uma nova arma", comenta Sérgio Oliveira, diretor da Divisão Cirúrgica do Incor. _______________________
Fonte: Ciência Globo Repórter,
14/01/2005 |