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A medicina pode vencer a morte? Miguel Srougi Por não aceitarem o aniquilamento físico e a separação dos seus entes, os seres humanos sempre estiveram em busca da imortalidade. Essa procura incessante está registrada até mesmo na história remota. Textos bíblicos mostram que o homem foi colocado no mundo para ser imortal, mas perdeu esse privilégio pelas transgressões morais -aquela refeição indevida no Jardim do Éden. Mesmo assim, Adão sobreviveu 930 anos, seu filho Seth, 912 anos, e Enos, seu neto, 905 anos. Hoje, quando homens e mulheres vivem, em geral, menos de 80 anos, fico curioso de saber até que ponto a dita gula mudou a nossa história.
De
acordo com os evolucionistas, toda a pressão se fez para que os
seres humanos se mantivessem saudáveis até o final da sua fase
reprodutora; depois disso, com a espécie perpetuada, nosso organismo
perderia sua relevância e vitalidade. Nessa coreografia, real ou
não, há uma questão primordial. Por que, biologicamente,
envelhecemos e morremos?
A
imortalidade - ou a extensão prolongada da vida nos seres humanos -
produziria problemas insolúveis Em segundo lugar, herdamos dos nossos antepassados genes ruins, responsáveis por doenças cardíacas e neurológicas, hipertensão, diabetes, câncer e muitas outras, que aceleram a deterioração e nos aproximam da morte. Finalmente, envelhecemos e morremos por influência do mundo que nos cerca. Pela ação do próprio homem e por imperfeições da natureza -vivemos num ambiente altamente hostil, inundado por agentes químicos, ondas eletromagnéticas, vírus e outros microorganismos nocivos. Como conseqüência, nossas células sofrem processos de mutações e são injuriadas por radicais oxidantes produzidos por esses agentes, num concerto perverso que culmina com danos irreversíveis ao organismo. Ao se falar em estender a existência, seria interessante imaginar como seria a nossa vida num ambiente de recursos finitos. Infelizmente, quase intolerável. Sabemos, por exemplo, que as bactérias proliferam e morrem numa velocidade incontrolável. Se todas que povoam o mundo fossem transformadas em seres imortais, elas produziriam, após 14 dias de crescimento irrestrito, uma biomassa equivalente ao volume da Terra.
Ademais, de acordo com estudo publicado na revista "Nature",
existiam, em 1999, 800 milhões de pessoas subalimentadas no planeta.
Mantida a perspectiva de produção mundial de grãos, o mesmo estudo
prevê que em 2020 o mundo será habitado por 2,3 bilhões de seres
famintos. Além das perspectivas sombrias, temos que reconhecer que já vivemos num mundo altamente injusto. Levantamento publicado em 2000, pela Universidade de Cambridge, mostrou que 90% dos recursos para a saúde disponíveis no planeta são destinados a 10% de sua população, os mais ricos. Esse fenômeno, conhecido como "desequilíbrio 10/90", explica em parte por que no Japão e nos Estados Unidos a expectativa de vida de seus habitantes já se aproxima de 85 anos, e em 32 países ela é menor do que 40 anos, em 13 deles é menor do que 35 anos, e em Serra Leoa é de 26 anos. Fica claro que a imortalidade -ou a extensão prolongada da vida nos seres humanos- produziria problemas insolúveis em questões vitais como acesso a espaço, alimentos, água e outros recursos necessários à existência digna. Num exercício filosófico, mas de significado profundo, pensar na imortalidade significa enfrentar questões morais e sociológicas tão complicadas quanto os problemas de sobrevivência. No mundo desigual que habitamos, a extensão da vida humana seria privilégio de alguns, rapidamente aflorariam as raças dos imortais e a dos mortais. Mantidas as atuais estruturas sociais, a competição por emprego, espaço e comida seria destruidora. Surgiria, também, grande desestímulo para o desenvolvimento pessoal, já que a noção de vida finita cria, no homem, necessidades prementes de crescimento intelectual e de realizações.
Não
menos importante, a imortalidade tornaria muito complexas as
relações familiares, pois os imortais, com filhos imortais, gerariam
proles infinitas, incapazes de desfrutar das relações interpessoais
que enriquecem e pacificam a mente humana. A reprodução teria que
ser controlada, produzindo outra questão moral. Quem poderia? E
quanto poderia? Na prática, já são realizadas as primeiras experiências para reparar genes danificados, responsáveis por doenças que limitam a nossa existência, como o câncer ou a aterosclerose. Transplantes de órgãos mais complexos são executados em escala, resolvendo deficiências antes incontornáveis. Corações artificiais de pequenas dimensões já podem ser implantados no peito de pacientes com falência cardíaca irreversível, proporcionando ganhos de vida. Em laboratório, consegue-se produzir camundongos mais inteligentes, inserindo nos seus cromossomos genes que interferem com as funções cerebrais. Sem falar nas técnicas de clonagem que tornam possível a criação de seres mais perfeitos a partir de células isoladas. Lembro a clonagem um pouco preocupado, pois além de questões morais delicadas, tanto homens como mulheres poderão gerar outro ser privadamente, dispensando aquele encontro triunfal. Com todos esses progressos, o homem está vivendo mais? Lamentavelmente, não muito. No inicio do século 20, a expectativa de vida nos Estados Unidos era de 54 anos, no final dele o homem vivia 78 anos. Pouco animadora também foi a previsão feita por um painel de cientistas reunidos em 1996 pela revista "Scientific American". Mesmo considerando os avanços médicos iminentes, como a terapia gênica ou a possibilidade de substituição de quase todos os órgãos naturais ou, ainda, a hibernação humana, no ano de 2500, a expectativa de vida no planeta será de 140 anos. Como nenhum de nós viverá até o limiar do século 26 para usufruir o privilégio, seria possível, agora, prolongar a nossa existência? Certamente, sim. Por razões biológicas óbvias, não podemos escolher os nossos pais; por isso, não temos como deixar de receber genes indesejáveis. Poderíamos tentar mudar o planeta, ou de planeta, para escapar do ambiente hostil que nos cerca, mas suspeito que essa seria uma tarefa inglória no mundo injusto e egoísta que habitamos. Também porque as fotos que vejo da Lua ou de Marte não animam muito. Na verdade, o que podemos fazer com sucesso é auxiliar nosso organismo a reparar os danos impostos aos nossos genes, que aceleram a senescência. Começando por ingerir menos calorias. Experimentos com camundongos e macacos mostraram que é possível reduzir a incidência de câncer e das doenças da idade -e aumentar o tempo de vida desses animais- restringindo em 30% a ingestão diária de calorias. Uma outra pesquisa, produzida em 2001 pela Universidade de Loma Linda, nos Estados Unidos, demonstrou que ganhamos dois anos de vida evitando gordura animal na dieta, e seis anos realizando exercícios diários moderados. Ademais, concluiu que indivíduos obesos e fumantes vivem, respectivamente, 10 e 11 anos menos do que pessoas sem esses hábitos. Outra série de estudos, desenvolvida em animais e em humanos, comprovou que a ingestão diária de quantidades moderadas de vinho tinto reduz em 30% os riscos de ataques cardíacos e de derrame cerebral, que contribuem para abreviar a nossa existência. Para aqueles que, com muito entusiasmo, já recorrem a esse tipo de tratamento preventivo, quero repetir que a medicina fala em "quantidades moderadas". A história registra um sem-número de tentativas para se compreender a senescência e prolongar a existência humana. Charles Brown-Sequard, um endocrinologista do século 19, ficou mundialmente famoso administrando a seus pacientes extratos de testículo de cobaia, que, segundo ele, eram dotados de enorme efeito rejuvenescedor. Convicto, auto-injetava-se com o extrato e proclamava grande vigor físico e sexual. Conta a história que caiu em descrédito quando sua esposa abandonou-o por outro companheiro. René Descartes nunca anunciou que seria capaz de impedir o envelhecimento, mas propôs-se a desvendar os seus segredos. Suspeito que não tenha tido sucesso, pois morreu aos 54 anos. William Shakespeare, mais modesto, não tentou explicar nem tampouco impedir a senescência, apenas descreveu-a em "As you like it", por meio de Jacques: "As pernas, cada vez mais finas, dançam dentro de calças cada vez mais folgadas". Os leitores que me desculpem, mas, se grandes personagens da história não puderam resolver essa questão da imortalidade, não será um modesto cirurgião, num pequeno canto de jornal, que irá fazê-lo. E, enquanto doutores e medicina não se decidem, remeto todos a Bernard Shaw, em "The doctors dillema": "Gaste tudo o que você tem e use sua vida até não poder mais. É para isso que ela serve. E não tente viver para sempre. Você não terá sucesso". ____________________________ Miguel Srougi - Médico, pós-graduado em urologia pela Harvard Medical School (EUA), é professor titular de urologia da Unifesp (antiga Escola Paulista de Medicina).
Fonte:
Folha Opinião.
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