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Ciência ou auto-ajuda?
Feliz coincidência

Flávio de Carvalho Serpa (*)

A julgar pelas capas quase iguais das edições de abril das revistas Superinteressante e Galileu, alguma coisa de importante deve ter acontecido recentemente no mundo da ciência. As manchetes das revistas concorrentes são idênticas: "A ciência da felicidade" na Superinteressante, da Editora Abril, e "A ciência de ser feliz", na Galileu, da Editora Globo.

Tirando a coincidência das capas, as matérias das duas revistas são bem diferentes.

Não há, nos dois casos, o que se chama gancho no jargão jornalístico. Nenhuma descoberta científica, nenhum evento comum que justifique a coincidência das capas. "Ao longo dos últimos anos psicólogos e neurologistas vêm fazendo importantes descobertas sobre o que é e como funciona nossa felicidade. E as idéias que vêm surgindo corroboram pesquisas anteriores e acrescentam novas descobertas", enrola a revista Galileu na abertura de sua matéria.

"Esse assunto sempre foi desprezado pelos cientistas. Mas na última década, um número cada vez maior deles, alguns influenciados pelas idéias de religiosos e filósofos, tem se esforçado para decifrar os segredos da felicidade", embrulha a abertura da matéria da Superinteressante.

As duas matérias se apóiam na verdade em livros, alguns de 1999. Poderiam ter sido feitas em qualquer época. Por que justamente agora as duas revistas desovam o assunto?

Qualquer que seja a razão, a leitura das duas revistas mostra que não há apenas coincidência. Os dois textos convergem para o estilo comum e vitorioso comercialmente dos livros de auto-ajuda.

A receita é relativamente simples. Primeiro pegue um especialista para resolver as coisas por partes. Se a felicidade é um estado subjetivo difícil de definir, talvez ele possa ser explicado como uma mistura de coisas mais familiares. A Superinteressante elegeu a felicidade como a soma de prazer, engajamento e significado.

Sem liturgias

Já a revista Galileu é mais pródiga nos componentes da somatória da felicidade: auto-estima, autonomia, competência e relações pessoais. Quer dizer, a mistura é arbitrária, mas dá ao leitor a sensação de estar entendendo uma relação de partes com um todo.

Nenhuma das duas revistas qualifica a importância e a credibilidade acadêmica das pesquisas citadas – o mínimo de se esperar de artigos que se referem ao ponto de vista da ciência sobre o assunto. Na verdade nenhum dos dois artigos se apóia em descobertas científicas, mas sim num amontoado de dados estatísticos mais para o empírico do que para uma armação coerente com um fundo teórico.

O único ponto comum dos dois artigos é um trabalho feito em 1996 pelo psicólogo David Lykken, da Universidade de Minnesota. Pesquisando 4 mil pares de gêmeos idênticos, Lykken concluiu que a felicidade tem um componente genético predominante. Ironicamente, esse único ponto comum solapa a promessa de capa das duas revistas em dar ao leitor receitas práticas para ser feliz.

Para ser o ponto de vista científico sobre a felicidade, os artigos deveriam cumprir algumas das liturgias do chamado método científico. Se os artigos diferem tanto em suas fontes é sinal de que não há um consenso na comunidade científica. Nenhum dos dois artigos se refere a alguma descoberta ou trabalho seminal. Quer dizer, em papers que além de passarem pela peer review (revisão dos pares) têm também altos índices de citação em trabalhos posteriores.

Outra pauta

Análises estatísticas do grau de felicidade declarada por grupos de pessoas em situações diversas (solteiros, casados, solitários, gregários, ganhadores de prêmios de loteria etc.) têm valor científico limitado, porque se apóiam na avaliação subjetiva dos entrevistados.

Mas são informações valiosas no arsenal da auto-ajuda. Sendo meio vagas e fluidas, acabam servindo positivamente para todo mundo como no caso dos aconselhamentos astrológicos.

Mas nenhum dos dois artigos pode ser considerado baseado em descobertas científicas como prometem as chamadas de capa. Se bem que o artigo da revista Galileu tenha atravessado no meio do texto alguns parágrafos sobre o papel dos neurotransmissores na sensação de bem-estar e felicidade.

Não é mais segredo nem novidade que os psiquiatras e neurologistas – e até os clínicos gerais – já tenham resolvido como certeza científica que felicidade e bem-estar é o contrário da depressão, estado para o qual podem receitar, com razoáveis chances de sucesso, antidepressivos tipo Prozac.

Mas isso já seria outra pauta, é claro. Afinal nenhum infeliz vai poder se auto-ajudar ou se automedicar comprando na farmácia drogas que exigem receita médica.

(*) Jornalista

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Fonte: Observatório da Imprensa
http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos.asp?cod=327OFC001

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