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O
fim,
segundo
Veja
Sobre
a
morte
e os
temores
primitivos
Ulisses Capozzoli
A
matéria de
capa
de Veja da
semana
passada
(edição
1.904, de 11/5/2005),
com
a
chamada
"Vida
após
a
morte"
ilustrada
por
um
par
de
pés
sustentando uma
etiqueta
pretensamente
irônica
("Volto
já"),
mais
que
de
péssimo
gosto
é
um
atentado
à
inteligência
de
seus
leitores.
Além
de
evidência
do
ponto
em
que
estamos
quanto
à
banalização
e
superficialidade
na
cobertura
jornalística.
Por
várias e
diferentes
razões.
Se os
editores
de Veja tivessem
interesse
em
tratar
seriamente
um
assunto
que,
de uma
ou
outra
forma,
interessa a todas as
pessoas
(até
onde
sabemos,
todos
vamos
morrer,
o
que
parece
irrelevante
e
sujeito
à
suspeição
por
parte
de Veja), deveriam,
antes de
tudo,
articular
uma
pauta
minimamente consistente.
O
que foi publicado,
sob
o
chapéu
de "especial",
não
passa
de
colagem
de lugares-comuns, entremeada
por uma e
outra
entrevista,
evidência
clara
de
que
o
assunto
não
foi pensado, avaliado,
nem
devidamente
considerado – o
que,
para
citar
Sigmund Freud (1856-1939),
invocado a
corroborar
afirmações
que
nunca
leu, é
um
sintoma
a
ser
considerado.
A
pretensa
ironia
do
texto,
articulada
por
suposta
superioridade
de
um
crítico
falando aos
ouvidos
do
leitor,
não
passa
de
atitude
defensiva
para
um
trabalho
que,
honestamente,
não
paga
a
pena,
como
se dizia à
época
dos
manuscritos.
Mal-disfarçado,
aqui
e
ali,
por
citações
de
psicanálise,
sociologia,
antropologia
(e a
praga
jornalística
de
gente
famosa),
a
matéria
de
capa
de Veja é uma costura no
melhor
figurino
do
que
Alan Sokal e Jean Bricmont chamaram de "imposturas
intelectuais",
num
livro
que
leva
este
título,
referindo-se ao
abuso
da
ciência
pelos
filósofos pós-modernos (Editora Record, 1999, 316 pp.).
Mesmo
que
fosse
tratar
de
religião,
abordagem
a
que
o
texto
na
verdade
se limita, a
superficialidade
já
seria
insuportável.
Há uma
bibliografia
razoável
em
português,
de
fácil
acesso,
capaz
de
sustentar
um
tratamento
mais
promissor
que
o
pastiche
oferecido
por
Veja.
O
que
é a
vida?
Se a
principal
revista
semanal
do
país
aborda
um
assunto
com
a
dimensão
da
morte
com
tamanha
superficialidade,
o
que
esperar
de
redações
de
vestibulares?
Num
quadro
comparativo,
entre
espiritismo,
cristianismo,
budismo
e outras
religiões,
Veja faz
referência
aos
Camaiurás,
povo
do
tronco
lingüístico
Tupi-Guarani,
do Xingu,
como
contraponto.
O
exotismo pode
parecer
interessante à
primeira
vista.
Na
realidade
é
um
recurso
invocado
sistematicamente na
tentativa
de
dar
sabor
a
abordagens
insípidas,
onde
se serve
gato
por
coelho.
O
fato,
aqui,
é
que
hoje
o
Alto
Xingu
forma
uma
sociedade
intercultural, o
que
implica uma
influência
mútua
entre
todos
os
povos
da
região,
retirando dos
Camaiurás,
em
particular,
a
legitimação
a
eles
atribuída.
Criticar Veja, deve-se
dizer,
é uma
tarefa
espinhosa.
Como
seus
editores
costumam
fabricar
textos
a
partir
do
que
pensam
que
deveria
ser
esta
ou
aquela
realidade,
nunca
se sabe
exatamente
o
que
um
repórter
originalmente
escreveu,
mesmo
que
o
texto
lhe
seja atribuído, configurando uma
realidade
que
vai
além
dos
escritos
de Freud, aproximando-se de Fiodor Dostoievski (1821-1881)
enquanto
construção
de
absurdos.
Numa
abordagem
promissora do
que
é a
morte
e dos
insondáveis
domínios
além
do Aqueronte, o
rio
que
as
almas
devem
cruzar
segundo
descreveu Homero na
Odisséia,
certamente
é
imprescindível
discutir
o
que
é a
vida.
E
descrever o
que
é a
vida
em
sua
essência
permanece
um
desafio
para
a
ciência,
mesmo
com
a publicação, há
mais
de
meio
século,
do
clássico
O
que
é
vida
(Editora
Unesp, 1977, 192 pp.), do
físico austríaco Erwin Schrödinger (1887-1961),
volume
que
inclui os
textos
"Mente
e
matéria"
e "Fragmentos
autobiográficos".
Sem
falar
da releitura de Schrödinger,
em uma
obra
homônima
(O
que
é
vida?
50
anos
depois
–
Especulações
sobre
o
futuro
da
biologia,
Editora
Unesp, 1997, 221 pp.).
Sociedades
diferenciadas
Deixar ao
alcance dos
leitores
a
dificuldade
de se
compreender
o
mistério
da
vida
neste
início
de
século
21 –
quando
tudo
parece revelar-se
com
meia
dúzia
de procedimentos
banais
–
certamente
abre uma
perspectiva
mais
promissora
para
abordar
a
natureza
enigmática da
morte.
Neste
caso,
o
núcleo
de
interesse
está
em
saber
o
que
sobrevive a
esse
processo
radical.
Se é
que
alguma
coisa
que
poderíamos
reconhecer
como
um
"eu"
mantém-se
em
outra
dimensão.
E o
que
sobrevive à
morte,
se de
fato
algo
sobrevive,
como
acreditam praticamente todas as
culturas humanas
desde
os
tempos
mais
remotos?
Stanislav Grof,
autor
de A
mente
holotrópica
(Editora
Rocco, 1994, 280 pp.),
líder
de
pesquisas
no
Centro
de
Pesquisas
Psiquiátricas de Maryland e professor-assistente na
escola
de
medicina
da
Universidade
Johns Hopkins,
nos
Estados
Unidos, considera
que
"as modernas
pesquisas
sobre
a
consciência
lançam
luz
nova
sobre
a
questão
da
sobrevivência
da
consciência
depois
da
morte".
Mas,
adverte Grof,
para
isso
é
preciso
rever
a
postura
da
grande
parte
de
pesquisadores
científicos
não
habituados a essas
evidências
e
que,
por
isso
mesmo,
preferem ignorá-las.
No
texto "Sobrevivência
depois
da
morte:
Observações
a
partir
de modernas
pesquisas
sobre
a
consciência",
que
integra
Explorações
contemporâneas da
vida
depois
da
morte
(Editora
Cultrix, 1997, 265 pp, Gary Doore,
organizador), Grof defende a alteração de
consciência
com
o
uso
de
drogas
como
LSD,
psicoterapia
experimental e
diferentes
formas
de
meditação,
além
de
estados
de
consciência
não
habituais,
como
meios
capazes
de
fornecer
"uma
experiência
direta
de
muitos
fenômenos
descritos
em
visões
do
mundo
místico-religioso e
mitologias
escatológicas",
tratados
sobre
os
fins
últimos
dos
humanos.
Essas
evidências,
defende Grof, "dão
apoio a uma
visão
de
mundo
que
reconhece a
realidade
da
sobrevivência
post mortem da
consciência".
A
perspectiva,
aqui,
evidentemente,
não
é a da
aceitação
pura
e
simples
de
hipóteses
envolvendo as
possíveis
realidades
post mortem,
ou
determinada
concepção
de
consciência.
Mas
o
fato
de
haver
um
número
crescente
de
abordagens
nesta
direção.
Até
porque,
resultado
de
um
discurso
alienante da
mídia
(a
que
Veja dá
sua
contribuição),
substâncias
capazes
de
alterar
estados
de
consciência
são
tratadas
como
assunto
de
polícia,
jamais
como
teorias
do
conhecimento.
Neste
caso
específico,
um
clássico
– Plants of the Gods: origins of hallucinogenic use, de
Richard Evan Schultes e Albert Hofmann (McGraw-Hill, 1979, 190 pp.)
–
nunca
editado no Brasil refuta
qualquer
interpretação
policialesca. Schultes,
para
localização
de interessados, é naturalista e
diretor do
Museu
Botânico
da
Universidade
de Harvard e Hofmann,
químico,
o
sintetizador
do LSD.
Assim,
se
sociedades
diferenciadas,
como
determinados
povos
indígenas
brasileiros,
caso
dos
ianomâmis,
fazem
uso
de
substâncias
"mágicas"
em
rituais
religiosos,
a
tendência
é interpretá-las
não
como
sociedades
diferenciadas,
mas
como
retardatárias numa
espécie
de
corrida
em
direção
a
um
conceito
vago
de "progresso".
Campo
de
batalhas
Abordar
um
tema
como
"vida
após
a
morte"
como
se propôs Veja
sem
se
referir
especificamente à
natureza
da
consciência
é
contribuir
para
a
confusão,
em
lugar
de
algum
esclarecimento.
Rupert Sheldrake,
biólogo
e filósofo da
ciência
inglês,
tem
sua
própria
legião
de
detratores,
em
função
de
abordagens
pouco
convencionais
expostas
em
livros
como
A new science of life e The presence of the past,
entre
outros.
Mas
seus
conceitos
de
campo
morfogenético,
ressonância
mórfica e
hipótese
de causação
contínua
para
investigar
o
desenvolvimento
de
embriões
a
partir
de
um
"banco
de
memória",
ou
"memória
acumulada"
de uma
espécie,
é, no
mínimo,
interessante
para
não
ser
levado
em
conta,
como
faz Veja.
Relacionado à
noção
de
campo,
uma
estrutura
imaterial
como
o
campo
gravitacional
tem sido considerada
para
explicar
a
consciência
individual
comparada a
um
aparelho
de
rádio
doméstico,
que
capta
emissões
– o
que
significa
dizer
que
a
música
que
se ouve no
rádio
não
está contida
em
seu
interior.
A
analogia
aqui
é
que
a
consciência
não
seria produzida
pelo
cérebro
individualmente,
mas
o
cérebro,
como
um
equipamento
de
rádio,
"sintoniza" o
que chamamos
consciência,
como
admitem Sheldrake e o filósofo
francês Henri Bergson (1859-1941).
Claro
que
são
considerações
não-estabelecidas. A
ciência
é
um
campo
de
batalhas
para
as
idéias.
Algumas sobrevivem e prosperam, ao
menos
por
certo
tempo.
Outras
são
aniquiladas de
imediato.
A
ciência
leva
a
marca
do
homem.
Não
tem
nada
de supra-humano,
ainda
que
discursos
com
este
conteúdo
sejam
relativamente
freqüentes,
mesmo
em
ambientes
de boa
cultura.
Razão
básica
Há outras
referências
e
autores
indispensáveis
em
qualquer
abordagem
mais
consistente
sobre
a
possível
sobrevivência
de
algo
após
a
morte
que
Veja
simplesmente
ignora. As
Experiências
de
Quase
Morte
(EQMs)
são
uma delas.
Esses
casos
têm sido relatados
por
pacientes
que
num
determinado
momento
foram considerados
como
clinicamente
mortos
e
que,
por
razões
diversas,
não
cruzaram o Aqueronte.
Relatos de deslocamentos
fora
do
corpo,
de
travessia
de
túneis
luminosos
e
mesmo
de
cursos
d’água,
remetendo-nos a Homero e ao Aqueronte visitado
por
Ulisses,
são
freqüentes
nesses
casos.
Em
conexão
com
o
que
narra
também
O
livro
tibetano dos
mortos,
ou
Bardo
Todol,
compilação
de relatos
milenares
com
instruções
e
recomendações
para
um
moribundo
partir
deste
mundo
com
dignidade,
conhecimento
de
que
praticamente
nos
esquecemos e
nos
ressentimos,
sem
consciência
do
significado
desta
perda.
Uma
corrente de
pesquisadores
atribui
esses
fenômenos
a uma
espécie
de "delírio
do
cérebro".
Mas
eles
não
são
a
totalidade
dos
pesquisadores
e, se fossem, a
mera
estatística
não
lhes
garantiria a
certeza
de estarem de
posse
da
verdade.
A
ciência mecanicista
que
emergiu
com
o
século
17 trouxe
um
avanço
no
conhecimento
natural
e
um
recuo do
universo
mágico/teológico
cultivado
desde
o
desmoronamento
da
ordem
greco-romana,
na
altura
do
século
4.
Mas
isso
também
não
significa –
para
citar
Thomas Kuhn (1922-1996), filósofo da
ciência
muito
citado e
pouco
lido –
que
desde
então
tudo
tenha se estabelecido
definitivamente.
Quanto
a
alguns
autores
praticamente
indispensáveis
em
investigações
nos
domínios
da
morte
estão Michael
Grosso,
Ian Wilson e Raymond A. Moody Jr.,
nenhum deles
presente
nos
relatos de Veja.
Michael
Grosso,
filósofo e
autor
de The
final
choice,
entre
um
sem-número
de
artigos
nesta
área
de
pesquisa
intriga-se
com
o
fato
de "pessoas
inteligentes
não
só
permanecerem
indiferentes,
mas
manifestarem
resistência"
em
relação
a
novas
considerações
no
domínio
da
morte.
Considera
que
existe "uma
espécie
de
conspiração
contra
essas
informações,
uma
necessidade
de torná-las inofensivas,
irrelevantes
ou
inexistentes",
como
faz Veja.
Para
Grosso,
essa
resistência
"é
um
fenômeno
interessante e desconfio
que faz
parte
de
um
medo
do
irracional,
profundamente
arraigado,
um
medo
da
sombra,
em
dialeto
Junguiano".
Quanto
a Ian Wilson (A
experiência
da
morte
–
Indícios
de
vida
após
a
morte,
Editora
Campus,
1995, 274 pp.) e Raymond Moody Jr (Vida
depois
da
vida,
Nórdica,
1979, 172 pp.)
também
não
servem
para
consumo
indiscutível.
Mas
são
citações
indispensáveis
nessa
área
de
investigação,
mesmo
para
serem refutados.
A
razão
básica
para
ser
assim
é
que
a
ciência
é,
fundamentalmente,
um
encontro
renovado
com
o
desconhecido,
sistematizada
pelo
método
que,
como
tudo,
também
se transforma ao
longo
do
tempo.
Sob
o
domínio
da
futilidade
Apegar-se a
determinados
conceitos
como
definitivos
é
um
erro
já
demonstrado
como
a
aceitação
ortodoxa
do
aristotelismo
e o
princípio
de
que,
além
da
esfera
da
Lua,
reinava a
perfeição,
caracterizada
pelo
imutável.
Mesmo
que
a
morte
de
estrelas,
algo
então
inaceitável,
fosse
visível
a
olho
nu,
à
luz
do
dia.
A
proposta de
novas
abordagens
na
investigação
da
morte
e da
eventual
sobrevivência
seja
lá
do
que
for (se é
que
algo
realmente
sobrevive) a
este
evento
inevitável,
a
única
certeza
que
temos neste
universo,
encontra
sistematicamente
oposições
formais,
mas
entre
eles
a
capa
de Veja
nem
chega
a
ser
exemplo.
Isso
a
partir
da pressuposição de
que
o
mundo
físico
fosse
algo
mais
familiar,
mais
tangível
e confiável,
por
assim
dizer
– o
que,
rigorosamente,
não
chega
a
ser
verdade.
Ao
menos
nos
termos
em
que
é comumente referido.
Em "Além
do
dualismo
e do
materialismo:
Um
novo
modelo
de
sobrevivência",
abordagem
que
também
compõe o
livro
Explorações
contemporâneas da
vida
depois
da
morte
(organizado
por
Gary Doore), Mark Woodhouse, da Geórgia State University, retoma
Einstein
para
dizer
que
"consideramos a
matéria
como
sendo constituída pelas
regiões do
espaço
nas
quais
o
campo
é
extremamente
intenso",
interpretando,
em
relação
à relatividade,
que
"neste
novo
tipo
de
física
não
há
lugar
para
campo
e
matéria,
pois
o
campo
é a
única
realidade".
Ou
ainda,
tomando de
empréstimo
a
descrição
de Herman Weyl (1885-1955), matemático
alemão
com
importantes
trabalhos
na
teoria
da relatividade e
filosofia
matemática,
para
quem...
"...uma
partícula
material,
como
o
elétron,
é
apenas
um
minúsculo
domínio
do
campo
elétrico
em
cujo
interior
a
intensidade
do
campo
assume
valores
extremamente
elevados.
Este
nó
energético,
que
não
está
claramente
delineado
em
função
do
campo
remanescente,
propaga-se
através
do
espaço
vazio
como
uma
ondulação
da
água
na
superfície
de
um
lago".
A
conclusão destas últimas
considerações
é
que,
ao
contrário
do
senso
comum,
a
vida
e o
que
chamamos
realidade,
com
lastro
na
materialidade
do
que
nos
parece
familiar,
é, na
essência,
uma
experiência
de
profundo
estranhamento.
Daí
que
abordagens
sobre
a
morte,
sua
inevitabilidade e as
tentativas
de mapeamento de
seu
interior,
como
incursão
num
buraco
negro,
devessem
ser
mais
metódicas e abrangentes.
Caso
contrário
estaríamos
apenas
ampliando os
domínios
da
futilidade,
ignorância
e
medo
– acuados
por
temores
primitivos,
como
sugere Michael
Grosso.
_____________________________
Fonte:
Observatório
da
Imprensa.
Disponível
em:
http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos.asp?cod=329OFC001 |
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