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Viver mais e melhor

Viver muito mais que os avós já é uma realidade para a geração
atual de jovens e adultos. A promessa da ciência agora é a de uma
velhice mais saudável e prazerosa
Thereza Venturoli
Nascer...
Na infância, nosso ponto fraco é o sistema imunológico: para ele se
fortalecer, vai precisar de muito treino. Por isso as crianças são
mais suscetíveis às infecções
...amadurecer...
Aos 30 anos, o ser humano está no auge de suas funções mentais,
físicas e sexuais. Mas, no nível das células, o envelhecimento já
está começando a se instalar
...e envelhecer
Parkinson, Alzheimer e câncer, entre outras, são doenças associadas
à idade avançada. A boa notícia é que, quanto mais um indivíduo se
cuida ao longo da vida, menor a oportunidade de esses males o
atacarem na velhice.
Ainda há muitas lacunas na compreensão científica do envelhecimento.
Mas aquilo que a medicina já dominou concretamente a respeito desse
processo abre caminho para, pela primeira vez, atacar as razões que
levam à decrepitude física e mental. A visão que os cientistas têm
hoje das reações bioquímicas que ocasionam o desmoronamento das
estruturas sadias do corpo humano é a mais completa já colocada de
pé pelos estudiosos. O geneticista Gilson Luis da Cunha, da
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, explica que a
concepção mais atual do envelhecimento enxerga o processo como um
jogo de varetas: quando se tira um palitinho, os demais se
desequilibram. Componentes genéticos e ambientais se confundem, se
somam e se multiplicam, numa cascata de desajustes que leva as
células e, eventualmente, o indivíduo ao envelhecimento e à morte.
São evidentes as vantagens terapêuticas de enxergar os processos
bioquímicos do corpo humano como um feixe de varetas. Graças a essa
visão, os cientistas passaram a entender que o ataque ao processo de
envelhecimento tem de ser total – ou seja, não basta tentar retardar
um ou outro dos fenômenos vitais. É preciso que todos sejam
monitorados e corrigidos antes que comecem a perturbar a harmonia do
todo. É comum, por exemplo, que as pessoas, por volta dos 50 anos,
comecem a ter aumento de ácido úrico, de colesterol e da
concentração de açúcar no sangue. Essas três alterações costumam
aparecer ao mesmo tempo, como em uma orquestração genética perversa.
Essa e outras dessas orquestrações precisam ser atacadas todas de
uma vez.
O gerontologista inglês Aubrey de Grey, de 41 anos, um dos maiores
estudiosos e visionários da ciência que se ocupa do prolongamento da
juventude, afirma que são sete as frentes que precisam ser
decifradas para que esse objetivo possa ser atingido. Ele compara
cada uma delas a "pequenas goteiras que se não forem estancadas
acabam fazendo o teto desabar". Grey está absorvido pela idéia de
que, dado o ritmo do avanço das intervenções genéticas, dentro de
algumas décadas não será surpresa se os médicos estiverem de posse
de instrumentos capazes de agir diretamente sobre os sete focos
principais do processo de envelhecimento. A saber:
• Células a menos – Já se sabe que as pessoas ficam mais
baixas na velhice porque o espaço entre as vértebras se comprime. Ao
mesmo tempo, ocorre no organismo a diminuição do número de células.
Essas estruturas microscópicas que formam a pele, o sistema
digestivo, o sangue, os ossos e o cérebro perdem a capacidade de se
renovar. Essa é a causa da perda de massa muscular, densidade óssea
e de neurônios nas pessoas de idade.
• Intoxicação interna – Incapazes de se dividirem como antes,
as células ao morrer liberam substâncias tóxicas, que resultam no
aumento de gordura e deterioram a pele.
• Mutações no núcleo – Mutações no DNA (a molécula no núcleo
celular que carrega as informações genéticas) são normais. O acúmulo
delas, no entanto, acaba desorientando o comando da célula. Essa é a
causa mais comum dos tumores.
• Mutações na mitocôndria – Essa organela, que funciona como
um gerador de energia para a célula, tem seu próprio DNA, que também
sofre mutações. Doenças degenerativas como Parkinson, por exemplo,
se originam dessas mutações.
• Lixo demais dentro das células – As células perdem a
habilidade de processar o material resultante das reações químicas
realizadas em seu interior. Com isso, elas não conseguem expulsar
esse material. Com o passar dos anos, ficam inchadas. Isso gera
caroços nos tecidos que elas formam. Inchaços na superfície das
artérias, a degeneração macular e a neuronal são males que nascem
dessa incapacidade das células de expulsar as toxinas geradas em seu
processo vital.
• Lixo demais por fora – Por um fenômeno inverso ao da
contenção de toxinas, muitas células passam a lançar para o exterior
certas proteínas que normalmente ficariam encasuladas. Essas
proteínas formam bolhas pegajosas que afetam principalmente o
cérebro. O Alzheimer e doenças degenerativas do fígado derivam
justamente desse processo.
• Proteínas grudentas – Moléculas estruturais são aquelas que
formam os ligamentos, a parede das artérias e as lentes naturais do
olho humano. Com o passar do tempo, parte dessas células se
desprende e elas colam-se umas às outras, provocando endurecimento
das artérias e pressão alta.
Nenhum dos sete fatores listados por De Grey explica, sozinho, a
degeneração do corpo humano. A combinação deles – e o fato de que,
pela teoria das varetas, a ocorrência de um deles acaba ativando
outros – é a própria essência do envelhecimento. De Grey imagina o
dia em que as terapias genéticas vão penetrar no coração molecular
das células e interromper cada um dos sete fatores de
envelhecimento. Muitos de seus colegas acham que isso nunca será
possível. De Grey tira sua certeza de um fato interessante. Algumas
predisposições genéticas naturais e certas mutações nos seres vivos
produzem justamente as mudanças que ele acredita serem possíveis de
obter em laboratório.
Tirar a sorte grande na loteria genética ajuda mesmo a viver mais e
melhor. Um estudo comandado pelo geriatra Thomas Perls, da
Universidade de Boston, apontou que 20% dos centenários americanos
fumam, vários mantêm uma dieta desequilibrada e pelo menos 10%
sofreram em algum momento da vida problemas cardíacos, derrames ou
diabetes. Ainda assim, chegaram aos 100 anos. "Essas pessoas parecem
ter uma reserva funcional ou uma capacidade de adaptação que faz o
organismo resistir às doenças", disse Perls em reportagem recente da
revista Time. No entanto, torna-se cada vez mais patente que, nas
populações em geral, a predisposição hereditária para uma vida longa
e saudável tem um peso de cerca de 25% sobre o resultado final. A
responsabilidade sobre os restantes 75% recai sobre o estilo de
vida. Como explicou Bradley Willcox, do Instituto de Pesquisa em
Saúde do Pacífico, no Havaí, na mesma reportagem, de nada adianta
uma pessoa ter genes da categoria de um Mercedes-Benz se ela não
cuidar de sua manutenção e mantiver cheio o tanque do automóvel.
Quem descuida do seu Mercedes acaba perdendo a corrida para o
sujeito que tem um mero Fusca, mas o trata com carinho.
A definição de "estilo de vida" é ampla: inclui desde a prática de
bons hábitos (evitar o tabagismo, balancear a alimentação, praticar
exercícios) até circunstâncias como a nutrição na infância, a
qualidade da assistência médica que se recebeu, o nível de
escolaridade e o ambiente em que se vive – se sadio ou se poluído e
estressante. Os lendários anciãos japoneses das ilhas de Okinawa,
que são objeto de estudo desde a década de 70, representam a
conjugação ideal de todos os fatores benfazejos. Eles têm uma
alimentação rica em vegetais, fibras e substâncias antioxidantes,
como a soja. Ao mesmo tempo sua comida apresenta poucas calorias,
gordura e sal. Está demonstrado que a restrição calórica (só
calórica, e não de nutrientes) tem o poder de preservar a juventude
do organismo. Os idosos de Okinawa, além disso, mantêm-se ativos,
quase sempre lidando com a lavoura, não deixam de exercitar a mente
– seja tocando um instrumento, seja fazendo anotações num diário – e
estão plenamente inseridos em sua comunidade. Esse parece ser outro
fator importante na diminuição da mortalidade dos mais velhos: a
participação social. O resultado dessa mistura de bom comportamento
e ambiente propício faz com que esses centenários esbanjem saúde. Se
comparada com as estatísticas de nações industrializadas, a
incidência de problemas cardíacos, câncer e doença de Alzheimer
entre eles é baixíssima.
Poucas pessoas podem levar uma vida assim regrada. Isso é fruto de
aprimoramento cultural, de circunstâncias ambientais e de escolhas
feitas na vida. Mas há várias lições a aprender com os moradores das
ilhas de Okinawa. A primeira delas é que o ócio é literalmente
mortal. O organismo humano "enferruja" se ficar parado ou não
receber os lubrificantes corretos. Isso não vale só para o bem-estar
físico. Descobertas recentes indicam que manter uma vida intelectual
satisfatória é uma das maiores garantias de saúde sensorial que
alguém pode se dar. Manter a cabeça funcionando prolonga a vida e a
saúde dos neurônios. Na verdade, a atividade mental talvez faça mais
do que isso: alguns estudos sugerem que ela pode ocasionar o
nascimento de novos neurônios, mesmo na idade avançada (sim, você
leu certo, ao contrário da arraigada concepção de que os neurônios
uma vez perdidos não podem ser recuperados, descobriu-se há quatro
anos que novos neurônios podem nascer ao longo da vida e se somar
aos 100 bilhões originais). O outro ensinamento a tirar da longa
vida dos moradores de Okinawa é que o combate aos aspectos negativos
do envelhecimento começa na infância. Esses centenários chegaram
aonde estão porque sempre mantiveram esse estilo de vida. Nunca é
tarde para abandonar os maus hábitos – e nunca é cedo demais para
adotar práticas saudáveis.
Nem todos os avanços na compreensão da máquina da vida ajudam a
responder à questão básica: por que, afinal, as pessoas precisam
envelhecer. A resposta é mais simples do que parece: para morrer. A
natureza, como se sabe, tem compromisso com a existência da vida no
planeta. O mundo natural se organiza e trabalha pela manutenção das
espécies vivas e por sua constante reprodução. Mas, como todo ser
vivo em posição pouco privilegiada na cadeia alimentar sabe, a
natureza não tem compromisso com formas particulares e individuais
de vida – nem mesmo com aquela que se enxerga como o pináculo da
criação, o homem. Um organismo morre quando suas células começam a
parar de funcionar pela simples razão de que já nascem programadas
para esse evento final. A morte não é um ponto fora da curva, mas um
fenômeno que faz parte da própria geração do ser vivo. Ainda no
útero, as células de um feto humano cometem uma série de suicídios –
num processo chamado apoptose – para criar algumas partes do corpo.
Até os dois meses de gestação, os dedos em formação estão ligados
por uma membrana. Se as células dessa teia não se autodestruíssem,
os seres humanos teriam, no lugar de dedos, mãos em forma de pás,
como os patos. Esse tipo de suicídio programado é, em primeiro
lugar, um mecanismo que garante que cada bebê seja gerado à
semelhança de seus pais: com duas mãos, duas pernas, dois olhos e um
cérebro comandando tudo. A morte programada é fundamental também
para a manutenção da integridade de organismos prontos. É ela que
ordena, por exemplo, a desativação de células danificadas, que
possam comprometer um órgão. O próprio cérebro vive cometendo
apoptose – do nascimento aos 30 anos de idade, uma pessoa perde
cerca de 1 milhão de neurônios, numa faxina contra as células
velhas, cansadas ou que estejam sem uso. Esses comandos suicidas
são, enfim, a principal ferramenta contra o câncer. Sem a ordem que
dispara a auto-eliminação das células em determinado ponto de sua
existência, elas se replicariam incessantemente, criando tumores.
Desde a década de 70, sabe-se que as células humanas têm capacidade
limitada de se reproduzir: não se duplicam muito mais do que
cinqüenta vezes. Depois, morrem. Os responsáveis por isso parecem
ser os telômeros – as pontas dos cromossomos (onde está enrolado o
DNA), que não servem para nada, a não ser para evitar que a molécula
de DNA se esgarce como um cadarço de sapato sem aquela capa nas
extremidades. A cada vez que uma célula se divide, esse arremate
bioquímico vai encurtando, até acabar. Uma célula cancerosa jamais
pára de se multiplicar porque os telômeros estão sempre sendo
renovados.
A apoptose é ativada também sempre que o ataque de agentes externos
– radiação, poluição e ingestão de substâncias tóxicas às células,
por exemplo – provoca mutações no núcleo ou nas organelas celulares.
Essa é a idéia que está na base da teoria do dano oxidativo, uma das
mais acionadas para explicar esses fenômenos. Segundo essa teoria, o
organismo envelhece porque vai se intoxicando de oxigênio. Cerca de
5% do oxigênio que o corpo absorve para transformar em energia
permanece no corpo em forma altamente reativa conhecida como
"radicais livres". São moléculas ou átomos propensos a interagir com
os tecidos celulares causando neles um processo de oxidação, ou
seja, de destruição. Mais de 200 tipos de doenças da idade estão
associados à oxidação. Quanto mais agressões sofre o organismo,
maior a velocidade com que aparecem os "defeitos" que podem ativar a
apoptose.
Os animais multicelulares morrem por uma curiosa troca que fizeram
em seu processo evolutivo, uma trajetória de bilhões de anos. Ao se
tornarem multicelulares, os seres vivos se condenaram à morte. Uma
bactéria e outros animais unicelulares são "imortais". As bactérias,
como qualquer ser vivo, podem ser eliminadas por fome, desidratação,
envenenamento ou pela ação de predadores. Mas elas não cometem
apoptose. Esse sistema de autodestruição programada não é privilégio
de seres humanos, mas de todos os animais multicelulares – e só dos
multicelulares. Foi assim, como seres "imortais" capazes de se
clonar, que os primeiros organismos unicelulares começaram a povoar
a Terra há 3,5 bilhões de anos. Mais tarde essas células foram se
juntando em cooperativas multicelulares. O aumento na complexidade
dos organismos e, depois, a adoção da reprodução sexuada trouxeram a
morte celular. É essa a linha de raciocínio adotada pelo biólogo
William Clark, da Universidade da Califórnia, em seu fabuloso livro
Sex and the Origins of Death (Sexo e as Origens da Morte). Clark se
baseia na teoria do gene egoísta, proposta pelo influente zoólogo
Richard Dawkins, da Universidade de Oxford. Segundo essa idéia, os
seres vivos são escravos da vontade de seus genes, cujo único
objetivo na vida é serem repassados para a geração seguinte. Uma vez
alcançado esse objetivo – ou desiludidos de que isso venha a ocorrer
–, os genes se desinteressam de seus hospedeiros. Assim, com a
sensação do dever cumprido, eles relaxariam em suas atividades de
manutenção da vida, ocasionando o envelhecimento do organismo. Daí a
expressão "egoísta" criada por Dawkins. Os seres unicelulares não se
matam porque, obviamente, estariam dando cabo de seus próprios
genes. Como se sabe, os genes são apenas egoístas. Não são suicidas.
Os genes egoístas matam as células absolutamente alheios ao fato de
que o conjunto delas forma um ser humano – alguém que vive, ama, lê,
tem uma história, entes queridos e muita vontade de viver. É no
conjunto de células que residem, mais do que a aparência física ou a
saúde, as qualidades que nos tornam humanos e únicos – a
personalidade, as vocações e os talentos de cada um. Foram as
células trabalhando em conjunto que legaram ao homem a capacidade de
desenvolver a cultura e, com ela, alterar a realidade e a natureza a
sua volta. E, suprema ironia, a mesma cultura que criou maravilhas
sensoriais mas biologicamente inúteis, como as peças de Shakespeare,
as partituras de Mozart, as pinturas de Renoir e os dribles de Pelé,
produziu conhecimento sobre os processos vitais do corpo humano.
Esse conhecimento cresce de modo eficaz e acelerado e, como supõe o
visionário De Grey, talvez chegue o dia em que ele nos liberte da
ditadura dos genes.
Fonte: Revista Veja
Data: 12/09/2004
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