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Novas pesquisas sobre memória investem na busca por melhor desempenho e drogas capazes de apagar lembranças indesejadas
Cristiane Segatto, Gisela Anauate e Maíra Termero Uma máquina com mais memória e menos spam, o bombardeio paralisante de mensagens indesejadas, é a aspiração de todo usuário de computador. O sonho de consumo também se aplica ao cérebro. O superprocessador da vida parece travar cada vez mais freqüentemente, corrompido pelo excesso de informações que a era digital empurra circuitos adentro. Não por acaso, novas descobertas da Neurociência dizem respeito a dois dos maiores anseios modernos: potencializar a memória, melhorando seu desempenho, e apagar lembranças traumáticas, o chamado ''esquecimento terapêutico''. Essa segunda linha de pesquisa provoca polêmica nos Estados Unidos. Os cientistas buscam remédios capazes de varrer da memória experiências aterradoras sofridas por vítimas de violência, diagnosticadas com a chamada síndrome de stress pós-traumático (PTSD). O psiquiatra Roger K. Pitman, da Universidade Harvard, recrutou nas salas de emergência dos hospitais 41 sobreviventes de acidentes de trânsito. Parte dos pacientes foi medicada com propranolol, droga corriqueiramente utilizada contra a hipertensão. Como a substância inibe a liberação de hormônios relacionados ao stress - entre eles, a adrenalina -, Pitman esperava que o remédio suavizasse as recordações fortemente emocionais, impedindo flashbacks que fazem a pessoa reviver detalhes terríveis a todo momento. ''O propranolol não apaga lembranças, mas permite que a vítima mantenha um nível de memória similar ao que teria uma testemunha do episódio'', explica. A estratégia funcionou. Três meses depois dos acidentes, os pacientes que haviam tomado o medicamento apresentaram menos sinais de PTSD.
Para ter o efeito esperado, acredita Pitman, o remédio precisa atingir a amígdala cerebral - gerenciador dos aspectos emocionais - antes que a memória traumática se estabeleça. Um dia depois da experiência dolorosa pode ser tarde demais. O pesquisador está empenhado em confirmar seus dados e determinar qual seria o tamanho dessa janela de oportunidade. A investigação traz mais perguntas que respostas. Se cada pessoa nada mais é do que o conjunto de suas memórias, seria ético receitar uma pílula capaz de reduzir ou apagar lembranças? Caso o remédio estivesse disponível no fatídico 11 de setembro, o destino do Iraque teria sido diferente? Sobram especulações. O cientista James L. McGaugh, tido como o maior especialista em memória nos dias atuais, considera ético o uso de remédios para abrandar memórias. ''Ninguém é a mesma pessoa o tempo todo, afinal somos alterados constantemente por nossas experiências'', disse a ÉPOCA o professor do Centro de Neurobiologia do Aprendizado e da Memória da Universidade da Califórnia, em Irvine. ''Se podemos extrair tumores e consertar uma perna quebrada, por que não devemos tentar reparar memórias horríveis?'', questiona. A busca pela pílula do esquecimento motiva discussões também no conselho de bioética que assessora o presidente George W. Bush. Em um documento recente, o grupo condenou a prática: ''Uma droga capaz de dissociar nossas histórias de nossas recordações poderá impedir o reconhecimento de nossas imperfeições''.
Esquecimento Como o espaço do cérebro é finito, ninguém guarda tudo. Uma pessoa pode ter grande facilidade para números e decorar uma seqüência de cartas de baralho. Mas em geral quem tem memória espantosa demonstra também dificuldades emocionais. Afinal, o cérebro trabalha mais para uma que para outra habilidade. Na maioria dos casos, esses indivíduos têm um quê de Funes, o Memorioso, personagem de Jorge Luis Borges que jamais esquecia. Recordava a cor exata das nuvens em determinada data, a forma dos galhos de todas as árvores, os detalhes de um dia inteiro de sua vida. Mas não era capaz de analisar as memórias, compará-las com outras, avançar.
Sono reparador Apesar de todos os avanços recentes na compreensão dos mecanismos do cérebro, restam muitas dúvidas sobre a formação da memória. Segundo a teoria mais aceita, o estímulo sensorial provoca uma cascata de informações biológicas que, com o passar dos dias, produzem alterações morfológicas no cérebro, detectadas visualmente. ''Uma das grandes questões da Ciência é saber como isso ocorre, ou seja, qual é a essência da construção de cada um de nós'', diz o brasileiro Miguel Nicolelis, co-diretor do Centro de Neuroengenharia da Universidade de Duke.
Até recentemente, o cérebro era visto como um computador pronto a receber as informações do ambiente, processá-las e dar uma resposta. Hoje os neurocientistas sabem que as coisas não são tão simples assim. O cérebro está sempre lembrando o que aconteceu, retraçando os passos de perdas e ganhos impostos por comportamentos passados e impondo um filtro sobre o que vem de fora. Nicolelis defende uma teoria original: a de que o cérebro incorpora ferramentas do cotidiano - roupas, óculos, computadores - como uma extensão do próprio corpo. Graças à memória, aprendemos a utilizá-las tão bem e a não imaginar a vida sem elas. ''O carro hoje é o exoesqueleto do ser humano, nossa capa de besouro'', brinca. A partir dessa idéia, a equipe de Nicolelis está trabalhando num chip que possa traduzir estímulos cerebrais. O objetivo é que, no futuro, pessoas paralisadas possam controlar membros mecânicos. Isso depende (e muito) da memória. Neurônios turbinados Não há quem não reclame de lapsos de memória nos dias de hoje. Segundo os especialistas, a maioria das falhas está relacionada a rateadas na memória de trabalho, aquela que dura poucos segundos e é ativada quando perguntamos um número de telefone (e esquecemos dele logo depois de discá-lo). Esse mecanismo é normal e até saudável, porque evita o atolamento dos arquivos com informações inúteis. Um dos maiores vilões da memória é o stress, que causa uma agressão brutal ao organismo. Para aumentar a agilidade de processamento de informações, é preciso fazer atividade física, alimentar-se adequadamente e evitar rotinas estressantes. O que não é fácil. ''A queixa mais comum nos consultórios é de falta de memória por stress'', afirma o neurocirurgião João Roberto D. Azevedo, responsável pelo site www.ficarjovemlevatempo.com.br. ''Quem reclama por esquecer as chaves do carro não tem nada. O doente com problemas sérios de memória não percebe a situação e não se angustia'', comenta. O melhor exercício para estimular a memória e evitar déficits futuros é a leitura. Mas especialistas como Azevedo sugerem a realização de oficinas de memória, em geral freqüentadas por idosos. Eles se reúnem duas vezes por semana para realizar exercícios cerebrais sobre o que leram ou ouviram recentemente. Cada participante faz perguntas ao outro, utilizando o repertório do dia-a-dia: comentam a notícia mais importante do jornal ou tentam se lembrar do preço do tomate. É uma maneira de manter a mente ativa, relaxar e jogar conversa fora. Recuperação espantosa A incrível plasticidade cerebral, a capacidade dos neurônios de estabelecer novas conexões depois de uma lesão, está por trás de muitas das histórias de recuperação surpreendente. Por pouco o consultor de informática Anteu Gasparini, de 38 anos, não teve morte cerebral decretada depois de um acidente de moto, três anos atrás. Ele passou meses desacordado e despertou com a idade mental de uma criança. Graças a cirurgias, ao apoio da família e a uma brigada de terapeutas (psicóloga, fonoaudióloga, fisioterapeuta), Gasparini voltou à vida normal, recuperou a fluência em inglês e lançou um livro técnico de informática. ''Não me lembro do período do tratamento e de muitas coisas que aconteceram no ano do acidente'', conta. Mas, além desse lapso, as únicas seqüelas que guardou são as marcas da cirurgia, que esconde com cabelos compridos. As rotas da memória são mesmo imprevisíveis.
Entrevista com o neurocentrista Iván Izquierdo Ricardo Rimoli/ÉPOCA
O neurocientista Iván Izquierdo, professor da PUC do Rio Grande do Sul, é um dos mais ativos pesquisadores da memória. Com 514 artigos publicados, o argentino naturalizado brasileiro lançou em agosto o livro A Arte de Esquecer. A seguir, a entrevista que concedeu a ÉPOCA. ÉPOCA - Qual é a melhor forma de estimular a memória? Palavras cruzadas servem para alguma coisa? Iván Izquierdo - Fazer palavras cruzadas é melhor para o cérebro do que zapear a TV sem prestar atenção a programa algum. Ir ao cinema e ouvir relatos interessantes também lubrificam a memória. O xadrez é bom, mas envolve um tipo de memória muito especializada nos movimentos desse jogo. Não existe nada melhor do que a leitura. ÉPOCA - Por quê? Izquierdo - Nenhuma atividade mobiliza tantas variedades de memória como a simples leitura. Ela põe em prática a memória das letras, a memória verbal e a memória da imaginação. ÉPOCA - A leitura reduz a degeneração mental provocada pelo mal de Alzheimer? Izquierdo - Está provado que a doença é menos severa e mais lenta em pessoas que lêem muito, em geral gente com nível de escolaridade superior. Um exemplo é o caso do presidente americano Ronald Reagan. Ele não era exatamente culto, mas como ator leu muitíssimo ao longo da carreira para decorar seus papéis. Essa prática deve ter contribuído para reduzir o avanço do mal de Alzheimer. Mesmo apresentando alguns sinais da doença, Ronald Reagan teve memória suficiente para ganhar a Guerra Fria. ÉPOCA - Esquecer é tão importante quanto recordar? Izquierdo - Sim. É fundamental esquecer para não ter memórias que nos azucrinam e impedem o aprendizado de coisas novas. Esquecemos para poder pensar. Em algumas patologias, as pessoas apresentam uma memória fantástica, mas só acumulam informações inúteis. São idiotas sábios. O escritor Jorge Luis Borges tratou muito bem desse assunto quando criou Funes, o Memorioso. O personagem tinha a memória perfeita e, por isso mesmo, era medíocre. Para pensar, é preciso esquecer e ser capaz de fazer generalizações. Caso contrário, ninguém consegue refletir sobre as informações a seu redor. ÉPOCA - Se uma pílula capaz de apagar memórias traumáticas estivesse disponível no fatídico 11 de setembro, os americanos deveriam tomá-la? Izquierdo - Acho que não. Eles não devem apagar essa memória. Precisam se lembrar de que foram atacados. Não é desejável que os cidadãos se lembrem daquilo o tempo todo. Se fosse assim, a sociedade ficaria brutalizada. É preciso aprender a atribuir a cada lembrança seu real valor. Existem tratamentos que ajudam a calibrar o peso das memórias e guardá-las assim. ÉPOCA - Onde surgiu o mito de que só utilizamos 10% do cérebro? Izquierdo - Não sei, mas é balela. O cérebro pode ser comparado ao desempenho de Rubinho Barrichelo no último GP de Monza. Está sempre tentando tirar o máximo de seus recursos, embora às vezes tenha de reduzir a velocidade nas curvas.
Testes: saiba mais sobre a sua memória
Fonte: Revista Época |
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