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O fôlego da terceira idade
Segurados do
INSS respondem por até 60% do movimento
de pequenos
mercados no interior
Dinheiro de
benefícios irriga sertão nordestino
Aposentados e
pensionistas sustentam famílias pobres e garantem a sobrevivência
durante o período da seca
AFOGADOS DE INGAZEIRA, Pernambuco. Natural da cidade sertaneja de
Quixadá, no Ceará, e conhecedora desde criança das mazelas
provocadas pela seca, a escritora Rachel de Queiroz costumava dizer
que a aposentadoria na área rural representou a “abolição para o
trabalhador do campo” e que o dinheiro dos benefícios sustentava a
economia de pequenas vilas e cidades. Ela estava certa. Em
municípios como Afogados de Ingazeira e Tabira, no Sertão de
Pernambuco, é o dinheiro da Previdência Social que irriga o comércio
das cidades e mantém as famílias no campo. Autoridades, sindicatos e
os próprios trabalhadores rurais são unânimes em afirmar que, sem
ele, haveria caos social provocado pela fome.
Para a grande maioria dos sertanejos que moram nas áreas rurais dos
dois municípios, a sobrevivência depende dos mais velhos. Eles
sustentam filhos, netos e até bisnetos com o benefício do INSS. É o
caso de Manoel Alexandre Pereira, de 66 anos, e da mulher, Maria de
Lourdes Ramos, de 62. Lavradores desde os dez anos, os dois se
aposentaram e hoje sustentam oito de seus 12 filhos, além da grande
maioria dos 32 netos e um dos três bisnetos.
— Deus dá no inverno, mas, quando não dá, tudo fica difícil, ninguém
tem o que comer. O lucro do sítio tem sido pouco e, se não fosse o
INSS, a gente já teria morrido de fome — afirma Maria de Lourdes,
que mora com a família no sítio Jati, a 20 quilômetros do Centro de
Afogados de Ingazeira.
A situação de Maria Eunice de Souza, de 59 anos, que mora no sítio
Alto Vermelho, não é diferente. Trabalhando com a enxada desde os
dez, ela hoje sustenta, com o dinheiro que recebe do INSS, o marido
(que ainda não conseguiu se aposentar), três filhos e uma neta.
— Nesse tempo não há emprego na roça. A família toda depende só
desse dinheiro e nada mais — conforma-se, enquanto deixa quase todo
o seu dinheiro em um mercadinho, no Centro de Afogados de Ingazeira.
Baixo número de postos de trabalho agrava miséria
Eunice enche o
carrinho com arroz, feijão, fubá, sardinha, carne apresuntada em
lata, leite em pó, biscoitos, sabão em barra, detergente e até papel
higiênico, considerados artigos de luxo para os padrões do lavrador
sertanejo. É que na caatinga a espuma de lavar a louça e do banho
muitas vezes ainda vem da raspa do caule do juazeiro; o sabugo de
milho chega a ser usado no lugar do papel higiênico; e a dieta
normalmente se restringe a feijão e farinha.
Com um número menor de pessoas da família para sustentar — a mulher
Maria de Lourdes Barbosa, de 43 anos, e a filha Tatiana, de 11 —
Antônio José dos Santos, de 64 anos, diz que a terra seca rende
pouco e que o trabalho informal em fazendas próximas ao sítio onde
reside, o Alça de Peia, lhe garantia apenas R$20 por semana para
cuidar de seus animais. Depois que se aposentou, a vida mudou.
— Dizem que esse dinheiro dos aposentados é amaldiçoado, mas pra nós
é uma bênção. Se não fosse ele a gente já tinha morrido de fome —
afirma Antônio.
Enquanto aguarda em uma casa lotérica o pagamento do seu benefício,
o agricultor João Macena Marcelino da Silva, de 64 anos, resume sua
situação:
— Só com a lavoura não dava para sobreviver. Sem esse dinheiro a
situação era horrível — diz ele, que sustenta mulher, quatro filhos
e quatro netos.
Para José
Patriota, assessor da Confederação Nacional dos Trabalhadores de
Agricultura (Contag), aposentadorias na área rural constituem o
maior programa de distribuição de renda do país. A prefeita de
Afogados de Ingazeira, Giselda Simões (PMDB), diz que o dinheiro da
Previdência é o que mais contribui para o aquecimento da economia do
seu município e para o sustento de “boa parte da população”. Segundo
Giselda, o dinheiro dos aposentados é o maior peso do comércio em
Afogados, fato confirmado pelos mercadinhos da cidade, que fica a
380 quilômetros de Recife.
— Posso dizer que 60% do meu movimento se dão entre os dias 1 e 5,
justamente o período de pagamento dos aposentados — afirma a
comerciante Maria Sidine Nunes de Lima, proprietária do mercadinho
Ideal, onde, dos cem clientes cadastrados para comprar fiado, pelo
menos 80 são os disputados idosos.
Aposentados têm crédito pré-aprovado no comércio
Diretor da Associação de Supermercados de Afogados de Ingazeira, que
congrega 40 lojas da cidade, o comerciante Antônio Aparício Veras
também atribui à renda gerada pelo pagamento de benefícios do INSS
60% do movimento mensal de sua loja:
— Antes, o pagamento do INSS era feito até o fim da primeira
quinzena de cada mês e a gente tinha um movimento equilibrado.
Agora, é tudo feito de uma só vez e, depois do dia 6 de cada mês,
quando acaba o pagamento, a gente entra numa espécie de recessão
branca. Por esse motivo venho quitando as promissórias dos
fornecedores até o dia 5 de cada mês — afirma Veras.
Veras é dono do C&V, onde Eunice fez suas compras, no mesmo dia em
que retirou no banco seu benefício de R$260. Já ia deixando R$196 no
mercadinho quando percebeu que não conseguiria passar o mês com os
R$64 restantes. Pediu, então, para pagar fiado R$40. Foi atendida de
imediato. Tanto em Afogados como na vizinha Tabira, o cartão do
aposentado mostrado ao caixa já é documento suficiente para
formalizar o “pendura”, o que pode ocorrer até mesmo nas feiras. O
crediário é informal, baseado na confiança.
— Basta exibir o documento e já está tudo resolvido. O sertanejo é
bom pagador — diz Veras.
Nas duas cidades, a Previdência injeta mais recursos nas prefeituras
no comércio do que o Fundo de Participação dos Municípios (FPM),
formado por recursos arrecadados com o IPI e o Imposto de Renda e
repassados pelo governo federal às administrações municipais.
Segundo Álvaro Sólon de França, autor do livro “A Previdência Social
e a Economia dos Municípios”, Afogados de Ingazeira recolhe por ano
cerca de R$5 milhões em FPM, mas irriga a economia com R$21,4
milhões provenientes dos seus 6.760 aposentados, dos quais 81%
residem na área rural.
Volume de dinheiro da Previdência supera o do FPM
Em Tabira, a 405 quilômetros de Recife, a situação não é diferente.
Os 4.159 aposentados rendem R$13 milhões ao comércio, mas a parcela
do FPM que a prefeitura recebe não chega R$4,5 milhões. De acordo
com França, essa situação não é exceção em Pernambuco:
— O dinheiro da Previdência supera a arrecadação do FPM em 160 dos
185 municípios pernambucanos.
França afirma que essa tendência aumentou entre 2002 e 2003 e poderá
crescer ainda mais. O chefe do INSS em Afogados de Ingazeira, Paulo
Henrique de Luna, informa que, a cada mês, são concedidas 600 novas
aposentadorias na região do escritório local do INSS, que abrange 12
municípios. Só em Tabira são 500 por ano, conforme o presidente do
Sindicato de Trabalhadores Rurais, João Batista de Santana.
França mostra que a tendência que vem se observando em Pernambuco
começa a ocorrer também no país. O estudo anterior produzido pelo
especialista mostrava que 3.546 dos 5.561 municípios brasileiros
repassavam por ano aos seus aposentados volume de recursos superior
à arrecadação de FPM. Os números aumentaram: agora são 3.773 cidades
que recebem maior volume de dinheiro com as aposentadorias do que o
repasse de FPM.
Vivendo de
aposentadoria
Cidades brasileiras têm sua economia movida basicamente pelos
benefícios do INSS
O aposentado Valdemar Conceição, 64 anos, mora longe mas vai todos
os meses a Monte Alegre de Goiás (a 323 quilômetros de Brasília)
para sacar seus R$260 na única agência bancária da cidade. Com o
dinheiro na mão, ele repete sua rotina mensal e segue para o mercado
a poucos passos da agência. O aposentado paga as compras do dia, que
incluem arroz, óleo, café, açúcar e fumo e acerta as contas do que
comprou fiado. Histórias simples como a de Valdemar se repetem
centenas de milhares de vezes e são a base da economia de dois em
cada três municípios brasileiros que têm como principal combustível
econômico as aposentadorias de seus habitantes.
São as pensões e aposentadorias, por mais baixas que sejam,
recebidas pelos idosos dessas cidades que garantem a sobrevivência
do comércio local e reforçam por tabela o caixa das prefeituras. No
interior do Brasil, os dias de pagamento de benefícios
previdenciários são festejados em milhares de municípios por
significarem os curtos períodos de riqueza vivenciados a cada mês.
— Moro lá na roça, mas venho sempre aqui no começo do mês para
receber meu dinheiro e comprar a comida lá pra casa. Eu pago o que
fiquei devendo do mês passado e abro uma nova conta — conta
Valdemar.
Em 3.773 dos 5.561 municípios brasileiros, o valor das
aposentadorias é maior que o total recebido do Fundo de Participação
dos Municípios (FPM), formado por recursos do Imposto de Renda e do
IPI. Isso significa que 67,85% das cidades brasileiras recebem menos
dinheiro da União do que a soma dos benefícios recebidos da
Previdência Social pelos seus habitantes.
Renda quadruplicada ao passar para inatividade
Em muitas destas cidades, as lojas só aceitam vender a crédito para
aposentados e mediante comprovante de aposentadoria. Em certos
municípios, a prefeitura chega a proibir o comércio de ambulantes
nos dias subseqüentes ao pagamento dos benefícios da Previdência,
para evitar a concorrência com os comerciantes formais. Já as
farmácias criam promoções especiais e dão descontos maiores para
quem recebe o benefício.
Mesmo com toda a expansão da economia rumo ao interior e os avanços
da agricultura, que se firmou como uma das grandes forças econômicas
do país, essa realidade vem se agravando nos últimos anos. A
pesquisa “Previdência Social e a Economia dos Municípios”, publicada
pela Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Previdência Social
(Anfip), já mostrava em sua edição de 2002 que 63,7% dos municípios
tinham sua economia escorada pelos aposentados. No ano passado, o
percentual de cidades nessa situação aumentou em quatro pontos
percentuais ou mais de 220 municípios.
— Os benefícios do INSS têm um papel fundamental nas economias
locais — afirma o organizador da pesquisa, Álvaro Solón.
O GLOBO visitou alguns dos municípios citados no estudo em três
estados e conferiu a força dos aposentados nestas cidades. Em
Cavalcante (GO), por exemplo, os aposentados e pensionistas
receberam R$2,4 milhões em 2003, enquanto o repasse do FPM foi de
apenas R$1,8 milhão. Em Afogados da Ingazeira (PE), as
aposentadorias e pensões somaram R$21,47 milhões em 2003, enquanto
os recursos do FPM foram de R$5,05 milhões. A relação entre o valor
dos benefícios e o Produto Interno Bruto (PIB) dos estados reforça o
poder de fogo das aposentadorias. Em 2003, a relação era de 5,77% em
Goiás, 9,44% em Pernambuco e 17,17% no Piauí.
— As terras da nossa região são ruins e os jovens têm poucas
oportunidades de trabalho. Em muitos casos, vivem com ajuda da renda
dos aposentados — afirma o vice-prefeito do município, Geraldo
Oliveira.
A pesquisa da Anfip mostra que em pequenos municípios, especialmente
do Nordeste e de Goiás, os aposentados são ex-trabalhadores rurais
que tiveram aumento de renda significativo. Isso porque, apesar de o
valor dos benefícios ser baixo — R$260 — os aposentados tinham uma
renda bem menor quando estavam na ativa ou, em muitos casos, nem
chegavam a receber dinheiro, já que o pagamento era em comida e
roupas.
O aposentado Marciano Silva, 64 anos, por exemplo, é um dos mais
animados na fila da agência do Banco do Brasil em Cavalcante (GO).
Para receber o benefício, ele percorre de carona os 80 quilômetros
que separam a sua casa da cidade. Cumprimenta os conhecidos e parte
para o mercado:
— Só passei a
ter dinheiro depois que eu me aposentei — diz ele.
Álvaro Solón
lembra que, entre 1988 e 2003, o pagamento de benefícios aumentou
87,93%, passando de 11,6 milhões para 21,8 milhões:
— A Previdência
garante renda diretamente a quase 22 milhões de pessoas e,
indiretamente, a outras 55 milhões. São mais de 45% da população
brasileira — destacou Solón.
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Fonte: O
Globo, 07/11/2004 |
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