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Determinismo genômico sai pela culatra

 

A pesquisa científica, enfim, não pode parar. A biotecnologia da hora, na qual se investem as esperanças despropositadas do público, é a promessa das células-tronco. Mais que ironia, é um sintoma eloqüente que se veja obrigada, para poder seguir em frente, a combater o equívoco que iguala genoma e pessoa

 


Por Marcelo Leite - cienciaemdia@uol.com.br

 


Primeiro foi uma carta no Painel do Leitor desta Folha, poucas semanas atrás. O missivista argumentava contra a pesquisa com células-tronco embrionárias, pois que ela implicaria destruir seres humanos. O embrião desfeito para obter essas células versáteis, dizia, já seria uma pessoa, dado que desde as primeiras divisões celulares já contaria com um genoma... humano.

Há dois domingos, o argumento foi retomado na página Tendências/Debates por d. Geraldo Majella Agnelo, presidente da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil).


Seu artigo, "Biogenética: Esperanças, Ilusões e Riscos", criticava o projeto para uma nova Lei de Biossegurança em discussão no Congresso, que permite o emprego em pesquisa de embriões congelados mantidos em clínicas de reprodução assistida.


Dom Geraldo discorda que seja "racional" (as aspas são suas) utilizar ou produzir embriões para investigação. Primeiro, invoca objeções técnicas contra esse gênero de pesquisa, como o fato de células-tronco serem "selvagens" (alusão a seu potencial teratogênico, a capacidade de originar tumores). Depois, apela para razões éticas.


"Sabidamente, o embrião, desde a primeira fusão e as primeiras divisões celulares, já dispõe de todas as "informações" necessárias para os desdobramentos posteriores", escreveu o cardeal. "A vida é um processo que tem início com a fecundação. Afirmamos, uma vez mais, e com toda a ênfase, que a vida deve ser respeitada em todos os momentos, desde o seu início até o seu fim." O argumento é respeitável em todos os sentidos. Basta rememorar que ele, na parte final, também alicerça a rejeição da pena de morte. O demônio, como sempre, se oculta nos de talhes -no caso, a noção de genoma como "informação".


Essa concepção subentende que o genoma -coleção completa de genes guardada nos cromossomos de cada núcleo celular- contém não uma parcela, mas toda a informação necessária para que se forme um organismo humano. O conceito ficou conhecido em filosofia da ciência como "determinismo genético": todas as características da espécie e do espécime seriam determinadas pelo genoma, a um só tempo condição necessária e suficiente desse evento ímpar.


O determinismo genético tem servido muito bem aos pesquisadores do ramo biotecnológico, nas últimas três décadas, pelo menos. Foi com base na idéia de que os genes controlam tudo que a engenharia genética alavancou bilhões para erguer um novo ramo industrial e realizar o Projeto Genoma Humano. Se o DNA determina tudo, esse o raciocínio, sua manipulação permitiria desarmar todas as moléstias e todos os males do mundo.


Decerto sempre houve críticos dessa visão reducionista da vida. Eles ponderavam que o DNA nada pode fazer nem faz sem os recursos do óvulo, do útero e do nicho ambiental humanos. Perderam para os pré-formacionistas a batalha pela hegemonia no pensamento biológico, ainda que se acumulem, hoje, descobertas sobre a complexidade do genoma que terminam por lhes dar razão, afinal.


A pesquisa científica, enfim, não pode parar. A biotecnologia da hora, na qual se investem as esperanças despropositadas do público, é a promessa das células-tronco. Mais que ironia, é um sintoma eloqüente que se veja obrigada, para poder seguir em frente, a combater o equívoco que iguala genoma e pessoa.

 

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Fonte: Folha de S.Paulo, 21/11/2004, reproduzida pelo JC e-mail 2651, de 22/11/2004

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