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Como vamos viver a morte?

 

Por Arryanne Queiroz*

 

O fim da vida costuma ser visto como uma experiência em que a solidariedade não faz diferença. A enfermidade ganha mais importância
do que o próprio ser humano



Todos os seres vivos morrem. Mesmo assim, a morte é um processo desconhecido para a humanidade: aos vivos, a experiência mais próxima com a morte ocorre graças à morte dos outros. Talvez por isso, a sociedade tenha tanta dificuldade em compreender a finitude da vida. Como acontece com outros fatos da vida, a morte é empurrada para os bastidores da convivência social, o que também implica em isolar do mundo as pessoas doentes em estágio terminal.

O fim da vida costuma ser visto como uma experiência em que a solidariedade não faz diferença. A enfermidade ganha mais importância do que o próprio ser humano. O doente não toma conhecimento de que tem direito à qualidade de vida e à humanização hospitalar. A repulsa à morte é parte de um comportamento moderno. Entre os séculos IV e XIV, a morte era um evento compartilhado com naturalidade pela comunidade do doente.


Apesar de as pessoas viverem menos tempo em razão da precariedade das condições sanitárias e da falta de tecnologia médica, a tolerância à morte do outro era mais consistente. Na vida medieval, a aproximação ao doente fazia parte do amadurecimento do espírito humano. Os doentes morriam num ambiente aconchegante cercado de familiares. Não havia uso de metáforas para explicar às crianças o fim da vida de parentes.


Atualmente, a maioria das pessoas se distancia drasticamente dos doentes em estágio terminal. A equipe médica, principalmente. É uma reação paradoxal diante do fato de que fazem de tudo para mantê-los vivos por mais tempo, ampliando o tempo de convivência recíproca. É uma realidade a ser mudada, pois o cuidar do doente não deve ser o cuidar exclusivamente da doença.


E, ainda que o doente incurável recuse conhecer todos os aspectos de sua doença e de seu processo letal, isso não pode implicar no seu abandono social. A saúde em sua ampla acepção é um direito de todos e um dever do Estado. Segundo a OMS, o doente terminal tem direito a viver o limite máximo de seu potencial físico e emocional compatível à progressão de sua enfermidade. Isso significa que a pessoa tem direito a receber atendimento adequado às suas necessidades biológicas e psíquicas e a fazer o melhor uso de seu tempo.


A humanização hospitalar segue tais diretrizes com o fim de melhorar a qualidade de internação da pessoa doente mediante ações que valorizem sua individualidade e resgatem sua dignidade. Nesse processo, familiares, voluntários da sociedade civil e equipe médica contribuem positivamente para o bem-estar psíquico do enfermo.


Recentemente, o Governo Federal percebeu a importância dessa campanha e efetivou o programa HumanizaSUS, cuja política inclui a educação permanente da comunidade hospitalar e a criação de redes de valorização da dimensão subjetiva de doentes e de profissionais de saúde. Mesmo assim, o atraso brasileiro é de vinte anos na implementação de projetos do gênero.

 

Segundo a ONG Viva e Deixe Viver, a situação mais delicada se dá nos hospitais públicos, em que o doente é posto em segundo plano e o governo é visto pela instituição hospitalar como o principal cliente do serviço prestado. Apesar da consciência de que todos os seres vivos morrem, a maioria das pessoas somente perde a ilusão de ser eterno na iminência do fim da própria vida.


É um momento psicologicamente doloroso, em que as pessoas refletem sobre suas escolhas e sobre oportunidades desperdiçadas. A descoberta da volatilidade da vida e da eventualidade concreta da morte provoca uma piora agressiva na saúde do doente. A mudança da atmosfera depressiva do ambiente hospitalar é essencial para amenizar esse sofrimento. A pessoa doente tem direito à humanização hospitalar mesmo quando sua situação patológica é irreversível.

O debate sobre a morte com dignidade não pode se restringir às discussões bioéticas e jurídicas a respeito da eutanásia: é preciso refletir também sobre o direito à humanização hospitalar, cujo público alvo não deve se restringir apenas às crianças enfermas ou aos doentes curáveis, o que equivale a proporcionar também aos doentes terminais experiências de entretenimento cultural e de integração familiar, capazes de conferir-lhes qualidade de vida à espera da morte.


O alívio do estresse e da angústia resultantes da internação é um direito fundamental de todos.

 

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*Arryanne Queiroz é advogada e pesquisadora associada da Anis - Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero. Artigo enviado pela autora ao ‘JC e-mail’

 

Fonte: JC e-mail 2681, de 05 de Janeiro de 2005.

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