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Inundação de imagens
O mundo
alucinado da velocidade, o mundo alucinado do “não temos tempo”, do
“não temos tempo mais para nada”, muitas vezes, não nos permite ver
as cidades
Por Lícia Beltrão -
liciafb@bol.com.br
Nelson Pretto
-
nelson@pretto.info
Passeando pelas cidades, somos afetados pelas marcas, pelos
vestígios do vivido, do experimentado por tantos passantes...
Passeando pelas cidades, podemos nos deparar com a exuberância, com
o paradoxo, com o vício, com a alegria, com a riqueza, com o horror,
com a desolação, com a miséria, com a ternura... Com um conjunto
disso e daquilo.
Um conjunto que vai compondo e ampliando o nosso universo de letras,
números, sons e imagens. Aspetos pitorescos e particulares
caracterizam cada conjunto, tornam cada um especial e concorrem para
que vejamos as cidades e nos vejamos nelas. Lugares distintos e
singulares se impõem. Lugares distintos e singulares se nos impõem.
O mundo alucinado da velocidade, o mundo alucinado do “não temos
tempo”, do “não temos tempo mais para nada”, muitas vezes, não nos
permite ver as cidades.
Não permite que nos vejamos nas cidades. Ali, onde tudo acontece –
ou tem que acontecer – nas tais frações de segundos que os físicos
já denominam de nano-segundos, a milionésima parte de um segundo...
Ali, onde tudo acontece engendrado pela nano-tecnologia, aquela
tecnologia tão pequenininha que nem sequer enxergamos, mas que vai
determinando o funcionamento desse, daquele, ‘daqueloutro’ fato do
cotidiano das cidades. Uma tecnologia que, por ser invisível, parece
até não existir!
Passeando por nossa cidade, São Salvador da Bahia, com olhos abertos
e lentos, com tempo disponível pra tudo, apreciamos parte dela.
Construída em cima de morros e colinas, debruçada sobre a
estonteante Baía de Todos os Santos, parece escrever um dos sentidos
traduzidos pelo poeta: Terra da felicidade! Seus belos vales, hoje
atravessados por diferentes avenidas, concorrem para que se tenha
uma cidade mais ligeira, uma cidade de bairros mais vizinhos.
Ocupadas por carros que ultrapassam a centena, em cada nano-segundo,
indo e vindo, as avenidas foram ocupadas também por generosos
canteiros centrais.
Homens de boa vontade, de percepção sensível, mais vulneráveis ao
encantamento, dizem que a primavera ali é constante. Eles são vistos
tanto na histórica avenida Centenário, projetada por Diógenes
Rebouças, como na Paralela, que dessa nasceu distante, por
conseguinte, isolada.
Mas não isolada das imagens e das letras que acometidas do fenômeno
conhecido como gigantografia, se acomodam em outdoors, que crescem,
que se espicham, nas encostas dessa e das outras avenidas,
anunciando a moda, gritando o preço, dizendo o prazo, apressando o
tempo, encurtando o espaço, mudando a paisagem.
Alterando, definitivamente, o espaço urbano. E como é longo esse
espaço e como é curta a corrente de opinião sobre o seu modo de
ocupação, vozes imperativas, cravadas de sentidos desleais ditam:
construam-se mobiliários, registrem e enfatizem o que se faz
necessário para manipular consciências. E os outdoors nascem e...
proliferam-se. Alguns ganham luzes e neons!
A cidade cede à pressão da voz, do comércio, do consumo, da cifra
(do vil metal?!). Não satisfeitos com mobiliários que já nasceram
urbanos, negócios com o nosso espaço livre são feitos e... eis que
começam a surgir, como do nada, em uma geração quase espontânea, nos
belos canteiros centrais, especialmente nos canteiros da avenida
Garibaldi, mais outdoors, agora com feição do que se concebe
provisório em razão do Natal, com a tendência de se tornar
permanente...
Porque festa e data especial, na Bahia, é o que não falta! O Natal
de Salvador é da empresa de telefonia móvel, do banco e do que mais
chegar (e pagar!!!). Vale a pena arrecadar um pouco mais de impostos
e ocupar de forma tão vergonhosa o solo da nossa cidade e nossas
mentes e espíritos tão leves nessa época?!
Pensamos que essa outra tecnologia (macro-tecnologia?!), ‘devagarinho’,
tende a se incorporar e fazer parte do nosso cenário urbano, do
nosso imaginário também.
O que é pior! Essa perspectiva alucinada de tudo ser visto e
mostrado, de forma constante e permanente traz para o centro das
discussões as profundas transformações em torno das concepções de
cultura que estamos vivenciando. Junto com as imagens das tvs (das
emissoras e dos “sorria você está sendo filmado”!), os outdoors
parecem comandar o espetáculo!
Se assim o é, cria-se um imaginário planetário que vai construindo
um real ou uma espécie de “autenticação do real”, como diz a
pesquisadora paulista Stella Senra.
Um real que se impõe e que nos impõe um jeito de ser, de viver e,
principalmente, um jeito consumidor de viver. 2005 jeitos de viver,
de viver o Natal!
Que Damiana, Catarina e Mariana, as simpáticas e leves garotas do
canteiro de Ondina, criadas por Eliana Kértesz, continuem mostrando
um outro jeito de ser, de estar e viver.
*Lícia Beltrão [liciafb@bol.com.br]
e Nelson Pretto [nelson@pretto.info] são professores da Faculdade de
Educação da UFBA [http://www.faced.ufba.br]. Artigo enviado pelos
autores ao “JC e-mail.
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Fonte: JC
e-mail 2684, de 10 de Janeiro de 2005. |
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